02.12.2017

Vigiemos porque não sabemos nem o dia e nem a hora em que o Senhor voltará.

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Introdução

Damos início, hoje, não apenas à celebração de mais um ano litúrgico, mas também do Tempo do Advento. Fazendo a memória da primeira Vinda de Jesus, nosso Salvador, se acende em nós, de novo, a alegria da espera, a certeza da fé e a vigilância para a sua segunda Vinda que é certa, embora não saibamos nem seu dia, muito menos sua hora. É a graça, o espírito do “advento”, do espírito da espera e da preparação de mais um santo Natal.

  • A necessidade de gritar: nosso Pai

O tempo do advento, princípio do ano litúrgico, tem como objetivo colocar-nos, de novo, para dentro do princípio de nossa história e de nossa vida. E quem nos ajuda para isto é o profeta Isaias ou um profeta da sua linhagem espiritual através de uma incomparável e tocante oração, uma verdadeira joia da literatura e da teologia bíblica, considerada como “o primeiro Pai Nosso” ou  “o Pai Nosso do Antigo Testamento”.

  • Pecar é romper com Deus

Quando essa oração era feita, o Povo de Deus estava saindo e se libertando de uma de suas mais dolorosas experiências religiosas: o exílio, a deportação para o meio dos pagãos onde perdera toda a sua identidade, sua origem. Era hora de voltar para casa, para a Terra Prometida e começar tudo de novo. A degradação religiosa a que chegara o povo não podia ser pior: “nos tornamos imundície, e todas as nossas boas obras são como um pano sujo; murchamos todos como folhas e nossas maldades nos empurram como o vento” (Is 63,5). O desalento não podia ser mais grave: “não há quem invoque teu nome, quem se levante para encontrar-se contigo; escondeste de nós tua face e nos entregaste à mercê de nossa maldade” (idem, 6). O povo chegara assim a mais profunda experiência e consequência de seu pecado. Como sair dessa situação?

Foi então que o profeta, em nome do povo exclama: “Vós, Senhor, sois nosso Pai e nosso Redentor, desde sempre, é o vosso nome”.

Certamente, não há títulos mais expressivos e belos para o nosso Deus do que estes: “Senhor”, “Pai”, “Redentor”! O de Pai, inclusive, será o mesmo que mais tarde o próprio Filho do homem usará abundantemente para designar sua origem, sua pertença e também para indicar o rumo de toda a verdadeira oração. Além do mais, o termo Pai, muito mais que criador nos transporta para a proximidade, a familiaridade, a intimidade de Deus.

“Pai” quer dizer princípio do ser, fonte da vida, proteção e cuidado pela sua casa (senhorio). “Redentor” (goel) quer dizer aquele que se faz próximo, para defender, para libertar, para proteger e fazer justiça. São Francisco, na sua “Exposição do Pai-Nosso”, assim comenta a invocação: “Ó Santíssimo Pai nosso: criador, redentor, consolador e salvador nosso” (EPN 1).

O Pai é criador, princípio e doador do ser a tudo o que é e existe; é redentor e salvador, especialmente pelo envio do Filho, que pela sua santa Cruz nos redimiu; é Deus de misericórdia que se compadece de nós, se compromete em socorrer-nos em nossa miséria; é nosso conforto, isto é, a força em nossa fraqueza, consolação em toda a nossa desolação. São Francisco no ensina, assim, a agarrar-nos, a confiar-nos ao Pai, desde a obra da criação, desde a obra da redenção e salvação, e desde a obra de nossa eleição e santificação.

De um coração tomado pela angústia, mas também pela fé dos repatriados de todos os tempos, brota então, através do profeta, esta humilde e belíssima prece: “porque nos deixaste andar tão longe de teus caminhos e endureceste nossos corações para não termos o teu amor?” Aqui está a mais clara e expressiva consciência e experiência teológica do pecado: o rompimento com Deus, não buscando mais sua vontade, seu bem querer de Pai.

  • A necessidade de uma nova vinda de Deus

Diante de tamanha desgraça e angústia de outrora – a perda de sua própria origem, da fé, da religião e do próprio Deus – e de hoje – a desertificação da natureza e do coração do homem, causada pela “morte de Deus” no mundo da religião, da moral, da política, da economia, do trabalho, da família, etc.; diante de tantas esperanças que estão sendo enterradas, o profeta de ontem e de hoje, sabe que a salvação só pode vir de Deus e não pode fazer outra coisa senão gritar: “Oh, se rasgásseis os céus e descêsseis! Ante a vossa face estremeceriam os montes!”

Deus, certamente, ouvirá este grito e descerá como outrora desceu no monte Sinai para vir em socorro de seu povo eleito a fim de libertá-lo da humilhação dos opressores e poderosos do Egito. Como outrora movidos pelo santo temor os israelitas não ousavam aproximar-se do monte santo, também agora, este mesmo povo reconhece sua culpa e se ajoelha aos pés de Deus confessando seu pecado, sua infidelidade, sua deserção e o vazio de uma vida embotada pelo egocentrismo e atrelada ao vazio dos deuses pagãos e das vaidades deste mundo.

O que mais poderia dizer senão recordar-Lhe que só Ele é o “nosso Pai” e que eles querem de novo se abandonar totalmente à sua divina vontade; como o barro nas mãos do oleiro querem deixar de ser folhas secas e sem vida, jogadas para todos os lados à sorte do vento.

Eis o grande grito do tempo do advento na liturgia da Igreja: que Deus rasgue os céus e desça, que ele venha das alturas de sua majestade à baixeza de nossa condição, e faça misericórdia para conosco. Com e como o profeta, este grito vem recheado de fé e de esperança pois outrora “Vós descestes e perante a vossa face estremeceram os montes”. De fato, toda a história sagrada não passa de um grande testemunho do quanto Deus veio se inserindo na baixeza de nossa condição, culminando com a encarnação de seu Filho amado no seio da Virgem Maria (Cf. Fl 2, 6-11). Os montes, então, se estremeceram de uma vez por todas: isto é, os grandes da humanidade se viram estremecidos diante da grandeza que se revela nesta pequenez e simplicidade de um Deus-homem, um Deus-criança. E conclui o profeta com esta magistral indicação para nossa salvação: é colocando-nos para dentro “dos caminhos de outrora que seremos salvos” (Is 64, 4). Eis o sentido da primeira leitura de hoje e de todo o ano litúrgico.

  • Cantar o desejo da vinda do Salvador

Fazendo eco à entranhada prece do profeta Isaias, o Salmo de hoje, 79/80, lança, também, a súplica, cheia de desejo ardente, a Deus, para que nos dê a graça de consumar a nossa conversão ou retorno: “Senhor nosso Deus, fazei-nos voltar, mostrai-nos o vosso rosto e seremos salvos”. Mostrar o rosto significa, aqui, ser benevolente, favorável, gracioso, sorridente. É o contrário de desviar o rosto (ser desfavorável). O fundamento desta confiança está no pertencimento deste Povo a este Deus. Afinal, ele é Pastor, e os membros deste Povo são suas ovelhas:

Pastor de Israel, escutai,

Vós que estais sentado sobre os Querubins, aparecei.

Despertai o vosso poder

e vinde em nosso auxílio…

Do mesmo modo, Ele é o Agricultor, é seu povo é a sua vinha…

Deus dos Exércitos, vinde de novo,

olhai dos céus e vede, visitai esta vinha.

Protegei a cepa que a vossa mão direita plantou,

o rebento que fortalecestes para Vós.

Deus-Pastor e Deus-Agricultor, Povo-grei e Povo-vinha: imagens que o Evangelho irá resgatar de maneira delicada para mostrar a relação de amor e cuidado entre Deus e o seu Povo. Este Povo pode sempre confiar na vinda de Deus, em suas parusias (adventos, chegadas), na história: o Pastor não deixará abandonada a sua grei, o Agricultor não deixará abandonada a sua vinha…

  1. Necessidade da vigilância e do cuidado

Toda a história da salvação vem perpassada pelo mistério de um Deus que vem para visitar os seus, sua gente, seu povo a fim de libertá-lo e salvá-lo. Daí, também, a insistência dos profetas e do próprio Jesus, como no Evangelho de hoje, para que sejamos atentos, vigilantes e cuidadosos.

3.1. O perigo do adormecimento

Três fatores sumamente importantes e intimamente ligados entre si formam o plano de fundo da exortação evangélica de hoje.

Primeiramente, este discurso se dá no terceiro dia de Jesus em Jerusalém, o dia dos “ensinamentos” e das polêmicas mais radicais com os líderes judaicos (Cf. Mc 11,20-13,1-2). No final desse dia, já no “Jardim das Oliveiras”, Jesus sente a necessidade de ele mesmo estar vigilante pois percebe que o tempo de sua hora, a hora do desafio à fidelidade, do enfrentamento ao abandono do Pai e dos amigos está para chegar. Aproveita a ocasião, então e também, para oferecer a um grupo de discípulos (Pedro, Tiago, João e André – Cf. Mc 13,3) um amplo e enigmático ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” (Cf. Mt 13,3-37) [1]. O escopo deste discurso é chamar os discípulos todos para a atitude da vigilância em meio às vicissitudes históricas, na espera do inesperado do advento de Jesus Cristo, no fim dos tempos. Os quatro discípulos são os quatro primeiros chamados por Jesus (Cf. Mt 1, 16-20). Pode-se dizer, então, que eles representam a totalidade dos discípulos de todos os tempos.

O terceiro fator vem da experiência escatológica dos primeiros cristãos. Quando Marcos escreveu seu evangelho muitos fiéis viviam tão atraídos pela pessoa de Jesus que queriam encontrar-se com Ele o quanto antes. “Os problemas começaram quando viram que o tempo passava e a vinda do Senhor demorava. Logo se deram conta de que esta demora continha um perigo mortal. O primeiro ardor podia apagar-se. Com o tempo aquelas pequenas comunidades, podiam cair paulatinamente na indiferença e no esquecimento. Uma coisa as preocupava: que ao chegar, Jesus encontrasse os cristãos dormindo” (Pagola, O caminho aberto por Jesus – Marcos, 249).  

3.2. Cuidar do cuidado

O coração empedernido dos fiéis deportados para o exílio no tempo do profeta Isaias aparece como o “adormecimento” ou a “displicência” no evangelho de hoje. A displicência e a negligência são o descuido do cuidado. A vida do homem nasce, cresce e amadurece cercada e enraizada no mistério do cuidado. Por isso, o maior desafio da maturação humana é dispor-se a aprender a cuidar do cuidado da vida. Para expressar esse cuidado com o cuidado o evangelho de hoje usa o verbo “gregoréo”, que significa: vigiar, velar; ver, olhar, observar, estar atento, como faz o guarda, a sentinela, que, do alto, custodia, guarda a cidade. Neste tempo de tanta degradação, e corrupção o cristão de hoje, principalmente, precisa aprender a ser um guardador, uma sentinela atenta, no cuidado da vida – em sua pureza e inocência originária – soante em cada criatura, principalmente, nas mais frágeis e desprotegidas. Por isso tanta insistência de Jesus na exortação de hoje: “Cuidado! Ficai em guarda, velai! Velai!”.

No meio da noite do mundo com seus sonhos vãos e seus pesadelos demoníacos, é necessário que o discípulo vele. É preciso que seu espírito desperte e se mantenha vigilante, atento, na diligência e solicitude, antes que lhe sobrevenha o sono da morte. Por isso, já alertava São Francisco: “Os meus irmãos que se deixam arrastar pela curiosidade da ciência, vão se encontrar de mãos vazias no dia da retribuição. Gostaria que se reforçassem mais com virtudes para que, vindo os tempos de tribulação, tivessem o Senhor consigo na angústia” (2C 195). Aqui, São Francisco adverte não contra a ciência (o saber), mas contra a curiosidade da ciência, que é o desejo vão de um conhecimento sem compromisso com o bem-viver, a cobiça de “ver” e de se “informar”, que leva a uma dispersão e à perda de si mesmo. O contrário da curiosidade da ciência é o estudo da ciência, isto é, o empenho concentrado e comprometido com a verdade e com o bem. E, além de alertar os exortava: “E recordem-se do que diz o Senhor: ‘Estai atentos, pois, para que vossos corações não se tornem pesados pela crápula e embriaguez e pelos cuidados desta vida e vos sobrevenha repentino aquele dia; pois, cairá como um laço sobre todos que habitam a face da Terra” (RNB 9,14).

3.3. Não o quando, mas o como

A questão essencial desta exortação de Jesus, portanto, não está no quando de sua vinda, mas no como da sua espera por parte dos discípulos. O cristão precisa aproveitar o momento oportuno da graça que lhe é concedido agora, – neste tempo que vai da Ressurreição até a Vinda definitiva de Cristo – para ir se preparando para o momento do encontro definitivo com Ele. Para o cristão, cada dia, cada instante, cada crise ou acontecimento é momento oportuno (kairós) da graça, “momento favorável”, “dia da salvação” (2Cor 6, 3). Para tornar mais concreta e explícita a necessidade e a importância de como devemos portar-nos neste tempo de espera de sua segunda Vinda, Jesus, com a brevidade de mestre, cria a parábola do homem que parte para o estrangeiro.

Nesta comparação, o Senhor da casa é, evidentemente, Ele mesmo. A casa é a Igreja. A autoridade que o Senhor dá aos seus servidores é, diz São Gregório Magno, o Espírito Santo. De fato, é ele que faz aumentar e crescer e amadurecer a vida em nós. O porteiro e os servos são os discípulos. Com efeito, todos precisam estar de guarda à porta de seu coração, contra os assaltos do Adversário, isto é, dos espíritos enganosos e impuros dos vícios e dos pecados. Todos precisam velar na espera do inesperado do advento de Cristo. Todo o momento guarda a iminência do encontro definitivo de cada um com Cristo, na morte.

A espera do fim, porém, se transforma, para o cristão, numa esperança alegre e paciente. Paciente, pois a certeza de que a esperança não decepciona, dá firmeza para sustentar os sofrimentos do tempo presente. Alegre, pois, a exemplo dos primeiros cristãos, a expectativa de encontrar Cristo como o Bem-amado da própria alma é alvissareira e concede a jovialidade da vida. Esta esperança é vivida como serviço à Casa de Cristo, isto é, à sua Igreja. Cada um se empenha em realizar o seu trabalho, segundo a autoridade que lhe foi dada sobre a Casa, isto é, o dom do Espírito Santo, e os seus carismas. Cada um, segundo as capacidades que lhe foram dadas e segundo o serviço de que foi incumbido, solícito no cuidado de tudo e de todos, se prepara, assim, para, como servo bom e fiel, entrar na alegria do seu senhor.

Conclusão

“Advento”, significa, propriamente, “ato de chegar”, de vir, de retornar, de reaparecer, de iniciar de novo. Iniciar quer dizer, ir para dentro de, isto é, submeter-se ao processo da iniciação. Na iniciação nós estranhamos sempre e cada vez mais o que nos é familiar – o mundo cotidiano que costuma nos absorver e nos tornar indiferentes – e nos familiarizamos sempre e cada vez mais com o mistério. Iniciação é aprender a morar, a habitar no mistério.

Na graça da oferta de mais um ano litúrgico, queremos dispor-nos para acolher a graça do nosso princípio que não é outro senão o mistério do Filho de Deus que, de novo, vem fazer-se Filho do homem para que nós pobres humanos Nele nos tornemos filhos de Deus, seu Pai e nosso Pai.

Também nisto, São Francisco, o “homem escatológico”, “o novo evangelista deste último tempo” (1C 89), “o profeta do nosso tempo” (2C 54), “o homem novo e do outro mundo” (1C 82), nos deixa um belo e admirável exemplo. Diz um de seus hagiógrafos: “Embora já consumado em graça diante de Deus e resplandecendo em obras diante dos homens deste mundo, o santo pai estava sempre pensando em empreender coisas mais perfeitas e, como soldado veterano das batalhas de Deus, provocava o adversário para novos combates. Propunha-se a grandes proezas, sob a orientação de Cristo e, mesmo semimorto pela falta de saúde, esperava triunfar do inimigo numa nova refrega… Ardia, por isso, em um desejo enorme de voltar aos primórdios da humildade, e seu amor era tão grande e alegremente esperançoso, que queria reduzir seu corpo à primitiva servidão, embora já estivesse no limite de suas forças. Precisando moderar seu rigor antigo por causa da doença, dizia: ‘Vamos começar a servir a Deus, meus Irmãos, porque até agora fizemos pouco ou nada’” (1C 104).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] O “discurso escatológico” divide-se em três partes, antecedidas de uma introdução (Cf. Mc 13,1-4). Na primeira parte (Cf. Mc 13,5-23), o discurso anuncia uma série de vicissitudes que vão marcar a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada: vigilância e lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo velho (Cf. Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto ao “tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (Cf. Mc 13,28-37).