15.09.2018

O sumo da identidade de Jesus

Male hand reaching outMale hand reaching out

A segunda parte do evangelho de domingo começa assim: “Em seguida, começou a ensiná-los…”. “Em seguida”, significa, não somente logo depois de ter dito isto que acabou de dizer, mas também em consequência disso mesmo. Ou seja, Jesus explicita o que estava implícito:

“O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da lei, ser morto…” (Mc 8,31).

É a partir destas palavras que reluz o mistério do Filho do Homem como o Filho de Deus Servo e Crucificado. O ensinamento, acena também, para aqueles que seguem a Jesus, ou seja, que a essência deste próprio seguimento está enraizada na pureza da fé e da confiança que nascem da graça do encontro com o Crucificado, sem razões e motivações, sem “porquê” nem “para quê”.

A essência do Crucificado está, portanto, não no sofrimento propriamente dito, mas no sofrimento (paixão) que tem o caráter de rejeição – e, pasmemo-nos, rejeição divina! A cruz é ignomínia, vergonha. O Crucificado não sofre de modo heroico. Não é um herói trágico admirado pelos homens. É um rejeitado pelos homens e – isto é incompreensível humanamente falando – por Deus mesmo, pelo Pai; e, mais ainda incompreensível: esta rejeição é por amor ao mesmo Filho e aos homens, a quem o Pai quer recuperar como filhos. D. Bonhoeffer nos chama atenção para isso: “O chamado ao discipulado está, aqui, no contexto do anúncio da Paixão de Jesus. Jesus está para sofrer e ser rejeitado…A Paixão como acontecimento trágico poderia ainda ter valor próprio, honra e dignidade própria. Jesus, porém, é o Cristo rejeitado na Paixão. A rejeição tira da Paixão toda a dignidade e honra. Ela deve ser sofrimento sem honra. Paixão e rejeição, eis em resumo a definição da cruz de Jesus. Ser crucificado é sinônimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por força da necessidade divina. Qualquer tentativa de impedir o que é necessário é satânica, mesmo que esta tentativa provenha do círculo dos discípulos (o que é um agravante), pois assim não se quer permitir que Cristo seja Cristo. O fato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se o culpado, logo após sua confissão de Jesus Cristo como o Cristo e de sua instalação, revela que, logo de início, a Igreja se escandalizou com o Cristo sofredor. Ela não quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo não quer permitir que se lhe imponha a lei do sofrimento. O protesto de Pedro exprime sua relutância em se dispor a sofrer. Deste modo é que Satanás entrou na Igreja, pretendendo arrancá-la à cruz de seu Senhor”.

O que chama a atenção é a ambiguidade de Pedro. Se, primeiramente, sua confissão nasce do sopro de Deus, agora se deixa conduzir pelo seu ser carnal, mundano, humano, demasiado humano, chegando à ousadia de chamar Jesus à parte a fim de repreendê-lo. Pedro quer que Jesus o siga em seu conselho. Pedro desvirtua tudo: põe-se ele à frente e quer que Jesus o siga, que vá atrás dele.

A reação de Jesus, humanamente livre e soberanamente divina, porém, é também imediata e contundente: “Voltou-se, olhou para os discípulos e começou a repreender a Pedro: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,33). Comentando esta repreensão de Jesus a Pedro, diz o Subsídio litúrgico O Pão Nosso de Cada Dia: “Na verdade Jesus não diz “para longe de mim”, mas, para trás de mim” que é a expressão usada no chamamento dos discípulos. “Atrás de mim” (“opisso mou”, em grego)!”

Pedro está, pois, invertendo as coisas. Em vez de seguir a Jesus onde quer que ele queira ir, está querendo que Jesus o siga. Está querendo levar Jesus por um caminho que é o caminho humano, isto é, o caminho de quem pensa e discerne (phroneín) segundo os critérios humanos de julgamento. Em vez de deixar Jesus seguir o Pensamento, a Paixão de Deus, que estão infinitamente acima do pensamento e da paixão dos homens.

Eis a nova e definitiva etapa de formação para a qual Jesus está introduzindo seus discípulos. Por isso, em verdade, “Jesus não manda Pedro para longe, não o expulsa de sua Escola, mas o chama de novo a segui-lo! Jesus chama Pedro para que fique perto dele, mas no seu devido lugar: ‘atrás de mim’. Colocar-se atrás de Jesus, segui-lo, trilhar seus passos, fazer seu caminho, viver sua vida é a característica fundamental do discípulo” (idem).

  • Tome a sua cruz e siga-me

Chegamos assim à conclusão deste trecho e que é também, o ponto central e vital de todo o Evangelho de Marcos, o grande ensinamento de Jesus: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). Temos aqui a mais decisiva e cristalina definição de um cristão, isto é, de um discípulo de Cristo: o caminho do cristão é o caminho de Cristo e o caminho de Cristo é o caminho da Cruz. Aqui se revela o caráter do Servo-discípulo-escutador-obediente de Deus que aparece nos escritos que estão sob a égide de Isaías.

Jesus diz, “se quiser…”. Jesus deixa livre os seus ouvintes. Não impõe o seguimento, o discipulado. Este deve nascer da espontaneidade da boa vontade do ouvinte. Entretanto, caso o ouvinte queira se fazer seguidor, discípulo, este querer nasce já do toque da afeição do encontro com o Mestre que chama.

Diz, também: “Renuncie-se a si mesmo”. Renunciar é abnegar-se. Abnegar-se é um negar-se. É dizer de si mesmo o que Pedro disse de Jesus: “não conheço este homem”. A

autonegação do discípulo, porém, não é a afirmação de si em sacrifícios, martírios, asceses. A autonegação significa desconhecer-se a si mesmo (tirar a atenção – não olhar para si mesmo) e conhecer apenas a Cristo e a si mesmo apenas a partir de Cristo. Esta autonegação não é, pois, mera denegação de si. É ab-negação: uma negação que desprende para a força do sim ao seguimento de Cristo. A partir do seguimento de Cristo o discípulo se re-anuncia, isto é, faz um novo anúncio acerca da verdade de si mesmo: ele não é mais aquele homem que vive a partir de si, mas aquele homem que é, agora, por graça de Cristo. Ele é o que é diante de Deus, nada mais nada menos.

E conclui o Mestre: “… tome sua cruz”. Quem esclarece bem o sentido cristão da cruz é Bonhoeffer: “Não é desventura nem pesado destino; é o sofrimento que resulta da união exclusiva com Cristo. A cruz não é sofrimento casual, mas sofrimento necessário. A cruz não é sofrimento relacionado com a existência natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo”. Cruz é o sofrimento de ser rejeitado por pertencer a Cristo. Cruz é, para o cristão, toda a luta, toda tentação, todo desafio que é assumido por e para pertencer a Cristo. Cruz é con-sofrer com Cristo o sofrimento de Cristo. É com-paixão com Cristo Crucificado.

Cada cristão, diz Jesus, tem a sua cruz. A cruz é a sua cruz – isto é, cada cristão tem a sua medida e o seu modo, seu jeito, único, pessoal, de participar do sofrimento-rejeição do Cristo Crucificado. É o seu modo de desvincular-se do “mundo”, de deixar morrer em si o homem velho, adâmico, psíquico (anímico – animal), carnal, na luta diária contra o pecado, contra aquilo que seduz, isto é, induz para fora do discipulado, do seguimento de Cristo. É o seu modo de, com Deus e com Cristo, tomar sobre si o pecado do mundo. Ninguém, porém, é exposto a uma cruz que não pode suportar, que está além de suas forças.

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini, ofm