17.03.2021

O silêncio de José

Um dos pontos impressionantes é o manto de silêncio que pesa sobre São José. Não sabemos praticamente nada de sua biografia. São Mateus, na sua genealogia, diz que seu pai era Jacó (cf. Mt 1,16). São Lucas, na genealogia que constrói remontando de Jesus até Adão, diz que é Heli (cf. Lc 3,23). Em outras palavras, não sabemos exatamente qual deles é o verdadeiro pai. Não sabemos com que idade casou com Maria. Nem com que idade faleceu. Alguns acham que logo após a ida oficial de Jesus ao Templo de Jerusalém, com a idade de 12 anos, idade da maturidade de um jovem judeu. José teria cumprido sua missão de ser “o guardião do Salvador”, como o chama a Exortação apostólica sobre São José, de João Paulo II, Redemptoris Custos, e poderia, então, desaparecer da cena.

Mas essa razão é muito superficial e utilitarista. Faria de José mera peça de uma história da qual ele não seria parte, apenas um figurante secundário.

Apesar disso tudo, o silêncio que o cerca totalmente não deve ser fortuito. Não haveria aí um sentido secreto que caberia identificar? Essa nos parece ser a tarefa da reflexão teológica. Ela não quer simplesmente especular por pura curiosidade, mas descobrir, com a inteligência devota, sentidos que revelem os desígnios do Mistério. Diz a Redemptoris Custos com acerto:  

“O clima de silêncio que acompanha tudo o que concerne à figura de José se estende também ao seu trabalho de carpinteiro em sua casa de Nazaré. Trata-se de um silêncio que revela de maneira especial o perfil interior desta figura. Os evangelhos falam exclusivamente do que José “fez”; mas eles permitem descobrir nestas “ações”, envoltas de silêncio, um clima de profunda contemplação. José estava cotidianamente em contato com o mistério, “escondido desde séculos” que “havia estabelecido morada sob seu teto”.

Aqui há uma razão teológica plausível. Aquele que veio do silêncio foi quem, por primeiro, escutou a Palavra. Àquele que veio da obscuridade da vida cotidiana foi dado contemplar, por primeiro, a luz que ilumina cada ser humano que vem a este mundo, Jesus (cf. Jo 1,9).

Esse silêncio não é mutismo de quem não tem nada a dizer. José teria muitíssimo a dizer. Ele, sendo justo, no sentido que aclaramos acima, certamente irradiou ao seu redor mais pelo exemplo que pelas palavras. Entretanto, quando as coisas são grandes demais, simplesmente calamos.

Também não é absentismo de quem, alienado, não se dá conta do que ocorre consigo. Ele sabe de sua missão, cumpre-a fielmente e está totalmente presente quando precisa estar presente, na gravidez, no parto, na escolha do nome do bebê, na hora do batismo judeu (circuncisão), na fuga para o Egito, na definição do lugar onde morar, na introdução de Jesus na experiência espiritual de seu povo indo com ele ao Templo aos 12 anos. Aí há uma plenitude de presença que se expressa mal por palavras, porém melhor por gestos e ações.

Paul Claudel, grande escritor e homem da alta cultura francesa, interessou-se muito pela figura de São José, especialmente por causa de seu silêncio. Numa carta a um amigo, de 24 de março de 1911, escreve: “O silêncio é o pai da Palavra. Aí em Nazaré há somente três pessoas, muito pobres, que simplesmente se amam. São aqueles que irão mudar o rosto da Terra?”.

Esse amor é vivido no mais absoluto silêncio, indiferente àquilo que era considerado importante para a crônica da época, seja em Jerusalém, seja em Roma.

Vemos três razões fundamentais que fazem o silêncio de José ser a atitude mais expressiva e adequada ao que ele é e significa para a história e para a comunidade cristã.

Em primeiro lugar, o silêncio de José é o silêncio de todo trabalhador. A fala do trabalhador são suas mãos e não sua boca. Quando trabalhamos, silenciamos, pois nos concentramos nas mãos e no objeto de nosso trabalho. O trabalho pertence à essência do humano. Pelo trabalho moldamos a nós mesmos, já que ninguém nasce pronto, mas deve completar a obra que a criação e o Criador começaram. Pelo trabalho plasmamos o mundo, transformando-o em paisagem humana, em cultura, garantindo nosso sustento. Pelo trabalho criamos um mundo que jamais emergiria sozinho pelas forças da evolução, por mais complexas e criativas que estas sejam. Sem o trabalho humano jamais teria surgido uma casa de madeira ou de pedra, jamais teria sido escrito o Livro Sagrado, jamais teríamos inventado um carro, um avião e um foguete que nos levou à Lua. O trabalho criou todos os valores no mundo. E foi feito no silêncio daquele que pensou. No silêncio das mãos que executaram o que se pensou.

O silêncio de José se insere no seio desta torrente de vida e de sentido representada pelo trabalho. Diz mais verdade quem afirma: “José foi um trabalhador, um artesão-carpinteiro”, do que aquele que simplesmente diz: “José foi o protetor do Verbo da vida”, pois ele foi protetor do Verbo da vida enquanto foi o trabalhador que, com seu trabalho, garantiu o sustento da vida da Vida encarnada em nossas vidas.

Em segundo lugar, o silêncio de José é o silêncio do Pai. O pai José representa o Pai celeste; segundo nossa compreensão, ele é a personalização do Pai eterno. O Pai, no seio da Trindade, representa o Mistério sem nome e sem palavra, o Princípio do qual tudo provém, a Fonte originária, geradora de todas as coisas. O Pai eterno é inexprimível. Sobre Ele cala-se a razão e silencia nossa boca. Ele é o silêncio de onde nascem todas as palavras. Quem fala é o Verbo. Ele é inteligência, expressão, comunicação. O silêncio do Pai se esconde dentro de cada palavra e de cada som do universo. O silêncio revela a natureza do Pai celeste. José, que é a sombra real e visível do Pai, só podia ser e viver o silêncio. Caso contrário, não seria a personificação do Pai celeste. Seu silêncio revela quem ele é: o Pai eterno presente, atuante, criando condições para que a história acontecesse assim como aconteceu. Sem José, Maria teria sido repudiada, não teria um lar, o Verbo não teria entrado numa família humana, não teria sido protegido quando nasceu em Belém e não teria sido defendido quando teve que fugir para o exílio. Todas essas ações se fazem no silêncio. O silêncio é a essência de José e a essência de quem ele representa e personifica: o Pai celeste.

Em terceiro lugar, o silêncio expressa nosso cotidiano e nossa vida interior. Grande parte de nossa vida acontece no cotidiano, no seio da família e no trabalho. Lógico, há palavras, às vezes até demais. Mas, quando queremos ouvir o outro, temos que silenciar. Quando trabalhamos, não conversamos nem discutimos. O trabalho só é bem-feito e cercado do cuidado necessário quando silenciamos e nos concentramos na obra que estamos fazendo.

Todos possuímos interioridade. Há um universo de vida, de emoções, de sonhos, de arquétipos e de visões em nosso interior. Dele nos vêm vozes e mensagens. Elas nos aconselham, nos advertem, nos inspiram. Misturada a essas vozes vem também a Voz de Deus, que nos conclama para uma vida mais sincera, mais transparente, mais aberta e mais devota. E só escutamos essa Voz e essas vozes, se fizermos silêncio em nosso interior. A vida interior é a vida do silêncio eloquente e fecundo. É nesse silêncio que maduram as boas intenções, que se elaboram os sonhos que dão sentido à nossa esperança e que nascem as palavras transformadoras da realidade.

José é mestre da vida interior silenciosa. Seu silêncio testemunha outro tipo de santidade e de grandeza que não passa pela visibilidade e pela palavra. Ele é o patrono da grande maioria da humanidade que passa despercebida e anônima neste mundo, que vive no silêncio e que, não raro, é condenada a viver no silêncio iníquo, quando precisariam falar, protestar e gritar contra palavras que mentem e ações que oprimem. O silêncio de José mostra a fecundidade do não falar, mas do fazer; do não se expressar, mas do estar no lugar certo com sua presença e ação.

Esse é o José da história, receptáculo preparado para receber em sua vida a plena presença do Pai.

Leonardo Boff