06.04.2019

O inaudito casamento da Misericórdia com a miséria.

Shot of Jesus standing outside surrounded by light
Istock

No domingo passado, através de uma das mais belas parábolas da Sagrada Escritura, celebrávamos a alegria do re-encontro, da reconciliação do filho pródigo com seu pai querido. Hoje, último domingo da Quaresma, através do acolhimento da pessoa de Cristo e de seu perdão à pecadora pública, celebramos o inaudito casamento da Misericórdia divina com a miséria humana.

  1. A promessa de uma libertação nova, nunca vista [Is 43,16-21]

A Palavra de Deus, hoje, começa com um oráculo da segunda parte do livro de Isaías, em que Deus interpela o povo da antiga Aliança para que deixe de pensar nas coisas do passado, pois Ele, o Senhor, vai realizar uma coisa nova que já está começando a aparecer. O objetivo imediato do profeta é levantar o ânimo, a esperança e a fé dos judeus no momento em que este povo vivia as agruras do desterro na Babilônia. O que esse oráculo anuncia como futuro, interpelando para a espera do inusitado, é celebrado em gratidão pelo salmista. Recordando o regresso, o salmista louva as maravilhosas proezas que Deus realiza por seu povo: “Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião, parecia-nos viver um sonho. Da nossa boca brotavam expressões de alegria, e de nossos lábios cânticos de júbilo” (Sl 125).

No entanto, o oráculo do Senhor que é lido na primeira leitura de hoje, aponta para algo que transcende mesmo o regresso do exílio da Babilônia. O Senhor anuncia a promessa de algo que não tem nenhuma comparação com o êxodo, a páscoa que o Senhor realizara nos tempos idos. O anúncio é de algo inusitado, algo que os olhos ainda não tinham visto, que os ouvidos ainda não tinham ouvido, e que não tinha subido ao coração dos homens. Para dizer que a salvação vindoura transcendia todas as maravilhas que o Senhor tinha operado até então, o profeta fala de uma travessia por uma terra selvagem. O deserto, a estepe, a terra selvagem seria o lugar em que esta coisa radicalmente nova aconteceria. O anúncio, diz respeito, portanto, a um novo princípio, uma nova aliança, inteiramente diferentes dos primeiros acontecidos no Egito. Será algo semelhante a uma fonte que jorrará no deserto e que vai não apenas matar a sede do seu povo, mas tornar-se o princípio de uma nova humanidade.

  1. A misericórdia de Deus como matriz, útero do Universo [Jo 8,1-11]

Pelo Evangelho de hoje, sumamente admirável e provocante, somos conduzidos para a aprendizagem da essência do seguimento de Cristo: sermos misericordiosos como Ele e o Pai são misericordiosos.

2.1. Deus não pode deixar de nos amar e perdoar

Pelo desenrolar do fato, percebemos que a misericórdia evangélica, antes de uma mera paixão ou simples emoção, é um fazer, uma obra, uma operação. É um amor prático, cheio de ternura, que transforma em obra a compaixão, o socorro ao outro, mesmo que isto custe, também, a própria (minha) condenação. Em outras palavras o que Jesus faz nesta cena testemunha o próprio ser de Deus. Deus não pode não nos amar ou deixar de ser misericórdia, mesmo que isto lhe custe a própria vida e a vida do Filho muito amado. Se não fizesse assim, seria infiel a si mesmo, estaria traindo sua própria deidade, o que é impossível. Ele não pode jamais condenar os homens, suas crias, suas crianças, a pupila de seus olhos. É por isso que Ele fala pelo profeta Isaías: “Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que existisse tal mulher, eu jamais me esqueceria de ti” (Is 49, 15).

É difícil encontrar exemplos para explicar o coração compassivo de Deus. Talvez possamos compará-lo ao útero materno. Sim, Deus é o útero, a matriz do Universo[1]. Nele está o ponto de alto da geração do Filho Unigênito. Nele está a fonte da criação do Universo e de cada indivíduo na sua unicidade. Jesus revela este amor matricial de Deus para com cada e todo ser humano – um amor universal que abraça toda a criatura. Ele, no seu relacionamento com os homens, revela o Pai dos céus, no seu cuidado, que veste as ervas do campo, alimenta as aves do céu, faz cair a chuva e nascer o sol sobre bons e maus, cujo amor paterno e matricial gera, nutre e rege todas as coisas.

Ser misericordioso é, certamente, junto com o mandamento do amor, a maior herança que Cristo nos deixou. Por isso, São Francisco exortava a um de seus Ministros: Assim, quero conhecer se amas o Senhor e a mim, servo d’Ele e teu, se fizeres o seguinte: não haja no mundo Irmão que tenha pecado até não poder mais que, após ver os teus olhos, se afaste sem a tua misericórdia, se misericórdia buscar. E, se não buscar, pergunta-lhe se não quer misericórdia. Se depois pecar mil vezes diante dos teus olhos, ama-o mais que a mim para atraí-lo ao Senhor. Tem sempre misericórdia com tais Irmãos (CM 9-11).

2.2. O sagrado e inaudito casamento entre a Misericórdia e a miséria

Os escribas e fariseus (e também nós, muitas vezes) trouxeram uma mulher (a humanidade decaída) que fora surpreendida em flagrante adultério e a expõem, colocando-a no meio, entre Jesus e o povo. Apresentam-se como especialistas e zeladores da lei. Simulam estar preocupados com o cumprimento da justiça da lei. Mas, o que pretendem mesmo é tentar, isto é, pôr à prova Jesus, para ter com o que o acusar. Pretendiam que Jesus ficasse num dilema – entre a mansidão, a misericórdia e a justiça. Jesus, porém, não se comporta como os homens divididos. Ele escapa à alternativa. Sua fala parte de uma outra instância, originária, anterior a toda a divisão, parte da unidade de Deus. Jesus já tinha chamado a atenção destes “justos” para a sua hipocrisia, isto é, a sua dissimulação. Eles pagam o dízimo das mínimas coisas, mas negligenciam o que é de peso na lei: “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23, 23). Eles se põem a si mesmos como juízes – eles que também eram transgressores da lei. E reivindicam de Jesus o cumprimento da lei, que mandava apedrejar a mulher adúltera (Lv 20, 10; Dt 22, 24).

Sem deixar-se envolver pela cilada dos fariseus e escribas, a resposta de Jesus é um gesto: “inclinando-se, pôs a escrever com o dedo traços no chão” (v. 6). O Deus escondido conhece o que está escondido no coração do homem (cfr.  Jó 13, 26; Jr 7,13). O gesto de Jesus parece ser o de uma enumeração dos pecados dos acusadores, que reivindicavam o cumprimento da lei, da justiça. Como eles continuassem a interpelá-lo, Jesus se levantou e disse: “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra” (v. 7). Jesus evita a cilada, lembrando aos acusadores a sua própria condição de pecadores. Jesus não diz: “seja apedrejada”, nem “não seja apedrejada”.

Santo Agostinho interpreta a resposta de Jesus assim: que a lei se cumpra, mas não por aqueles que são seus transgressores. Pois, a justiça própria daqueles “justos” era uma mentira, uma hipocrisia, uma dissimulação. No caso, a intenção de pegar Jesus em contradição com a lei de Moisés se dissimulava como zelo com o cumprimento da justiça. Jesus põe em evidência a hipocrisia deles. Os mais velhos vão embora primeiro: são os mais culpáveis ou os que melhor conheciam suas faltas. Jesus, então fica ali, sozinho, com a mulher, sem a presença dos acusadores.

 Na verdade, como disse Santo Agostinho, ficaram unicamente dois: a miséria e a misericórdia. O único Justo, o único sem culpa, não condena, perdoa. Segue, pois, o diálogo: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” A resposta dela não tem o menor traço de auto-justificação. Ela parece respeitosamente se entregar ao juízo do único sem culpa: “Ninguém, Senhor”. E vem a resposta graciosa de Jesus: “Eu também não te condeno: vai, e doravante não peques mais”. Ela não encontrou um juiz, mas um salvador. Alguém que se arroga o papel de ser zeloso da lei da justiça poderia acusar Jesus de, com sua misericórdia e perdão, estar fomentando o pecado. Santo Agostinho observa que o Senhor condena o pecado, não o homem. Ao homem, ele traz, com o seu perdão, a salvação. Jesus revela, pois, a graciosidade do amor divino, que salva: a misericórdia e, ao mesmo tempo, uma justiça superior, aquela que não vem do homem, nem da lei, mas de Deus, e que coincide com a própria misericórdia. 

  1. Cristão é aquele que procura conhecer, crer e configurar-se a Cristo misericordioso [Fl 3, 8-1]

Na segunda leitura de hoje, Paulo fala de Jesus com um tom de profunda intimidade e familiaridade: “Cristo Jesus meu Senhor” (v. 8). O conhecimento que Paulo teve de Cristo surgiu não através de estudos acadêmicos, mas, primeiramente, do confronto, da “briga” com Ele e depois através de um seguimento sumamente apaixonado e inteiramente entregue ao anúncio e testemunho de seu Evangelho, de sua Cruz. Este conhecimento é de tão grande excelência e familiaridade que tudo o mais que ele havia recebido do judaísmo se tornara dano, ruína, e, que, por isso, precisava ser desprezado como coisa de pouca monta.

 Conhecimento tem o sentido, aqui, de conascimento. Quer dizer: conhecer a Cristo é co-nascer com ele, é re-nascer nele, é ser nele, é ser um com ele, permanecendo na esfera do encontro com ele, perseverando no seu seguimento. Conhecimento, aqui, portanto, tem o sentido de vínculo vital íntimo que une pessoas que se amam, como se dá, por exemplo, no casamento.

A seguir, Paulo fala numa justiça que vem de Deus, apoiada na fé (Fl 3,9). Usualmente, entendemos fé como algo nosso: a fé que nós temos em Cristo. Mas, talvez, esteja falando da fé de Cristo no Pai que ele demonstrou em toda a sua vida, principalmente na cruz, bem como da fé Dele nos homens, nos apóstolos, em Judas e em cada um de nós. Neste sentido fé não é crença mas entrega, confiança, doação. Por isso fala com um tom de intimidade, de encontro, de relacionamento íntimo a modo de esposo-esposa: “Cristo Jesus meu Senhor” (v. 8). Em suma, o cristão é aquele que vive da graça do encontro, do chamado e do acolhimento de Cristo (Cf. Evangelii Gaudium 1-8).

Por isso, também, diferentemente dos judaizantes na comunidade, que se gloriavam dos seus méritos morais e religiosos, Paulo proclama, em alto e bom tom, que ainda não chegou ao fim de seu conhecimento de Cristo, ao auge da participação de sua Cruz e ressurreição (Cf. Fl 310-11).

Paulo não é só um enviado que corre. Ele é também um lutador que combate o bom combate. Quer alcançar a vitória definitiva. Quer consumar o seu curso, o seu percurso, a sua carreira. Esta consumação nada mais é que a “exanástasis” (ressurreição dentre os mortos) (Fl 3,11).  Eis o horizonte último, definitivo, de sua corrida: a ressurreição em Jesus Cristo ressuscitado – o Novo Céu e a Nova Terra, a consumação da Misericórdia que é Deus na Pessoa de seu Filho e, por consequência na pessoa de todos os homens e, através desses em todas as criaturas do universo inteiro (Cf. Campanha da Fraternidade, 2016). 

Conclusão

Jesus Cristo unindo-se à pecadora pública inaugurou o novo princípio de salvação da humanidade: o casamento da Misericórdia com a miséria. “Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso” ou “miserando atque elegendo” (lema do ministério episcopal do Papa Francisco, tirado de São Beda). Ou seja, segundo a explicação do próprio papa: “miserando” significa “misericordiando”, isto é, dando-lhe ou fazendo-lhe misericórdia e escolhendo-a, acolhendo-a, levando-a consigo, em seu coração (Cf. O Nome de Deus é Misericórdia” p. 41). Não há como, nós franciscanos, não recordarmos aqui o casamento de São Francisco com a Senhora Pobreza e seu testemunho acerca da graça do início de sua conversão: E o próprio Senhor me conduziu para o meio deles (os leprosos) e fiz misericórdia com eles… (Test 2)

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

[1]A misericórdia é, pois, fidelidade de Deus ao seu coração, isto é, ao âmago do seu próprio ser, onde o que domina é a sua misericórdia, ou seja, seu amor terno, matricial, visceral. Talvez, melhor do que fidelidade ao coração, nós poderíamos dizer, fidelidade ao ventre, pois a sua misericórdia é um amor que brota das entranhas mesmas de Deus, sim, de seu ventre – por que não? – de seu útero (cfr. hebraico: rahamin = amor visceral; rehem = ventre materno, útero materno).