13.09.2018

O cântico do servo sofredor – sua vocação e missão

Quem nos introduz neste misterioso caminho, neste domingo, é um pequeno trecho do 3º poema, ou cântico, do livro da Consolação do pseudoisaias no qual o próprio autor enaltece e decanta sua vocação-missão de profeta. O trecho surpreende porque ficou intitulado e conhecido como “O Poema (Canto) do Servo Sofredor” e, no entanto, tudo o que nele se proclama é motivo, aparentemente, muito mais de lamentação ou queixa do que propriamente de enaltecimento e louvação.  A dor, porém, se transforma em alegria, leveza, jovialidade, poema e canto quando aquele que a carrega se integra à sonoridade de sua origem, de sua fonte: Deus. Por isso, a alegria verdadeira e perfeita é aquela que não se evanesce quando chega o sofrimento, a dor.

O trecho inicia proclamando a característica mais significativa desta figura enigmática: “O Senhor abriu-me os ouvidos”.  Eis o segredo, o princípio que move a alma e toda a resposta deste servo que o leva a cantar e poetar em meio ou justamente por causa de seus sofrimentos e padecimentos. Ele é um discípulo – um escutador e aprendiz – de Deus, a fonte da alegria, da festa, do canto.

Como no domingo passado, também hoje, aqui, o Senhor vem, e toca no ouvido do seu eleito. Isso significa que ele lhe confia os segredos de sua vida, de sua missão. Mais, que ele não apenas se entrega, se confia todo e em pessoa ao seu servo, mas também, lhe confia toda a sua obra, vocação e missão.

E quem se confia a ele não é um patrão ou qualquer outro senhor ou príncipe deste mundo, mas Jahvé, o Senhor do céu e da terra, o Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó. Eis o princípio, a origem do poema, do cântico que transforma tudo, também os dissabores, tribulações e amarguras da vida em doçura, consolação e confiança. Lembremos o famoso testemunho de São Francisco, pronunciado depois que o Senhor o levou para o meio dos leprosos que detestava ver e muito menos tocar: ”O que era amargo se tornou doçura para a alma e para o corpo”.  Por isso, proclama o profeta: “O Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra porque sei que não serei humilhado” (Is 5,7).

O destino deste servo, à primeira vista, se apresenta o mais sombrio possível.  Mas, tudo isso, não tem outra finalidade senão a de mostrar o reverso da medalha: “a honra e a glória de poder carregar em suas costas o tesouro de seu Senhor, isto é, os bofetões e as cusparadas que seu Senhor leva e carrega de seus servos. Pois, a quem ama apraz sofrer o sofrimento do seu amado, amar o que e a quem ele ama, “carregar a sua cruz”, dirá Cristo mais tarde.

Este mesmo sentimento de júbilo em meio às dores e sofrimentos, oriundo da graça do encontro e do chamado, é a marca essencial de todos os eleitos ou servos do Senhor, como por exemplo, São Francisco de Assis. Contam os biógrafos que, no fim de sua vida, passou meses e meses molestado exteriormente e interiormente. Exteriormente pelas inúmeras doenças físicas, principalmente a dos olhos, por bandos de ratos que não o deixavam nem dormir e nem comer. Interiormente, porque assediado por graves tentações diabólicas que o levaram a exclamar: “Senhor, socorrei-me em minhas tribulações!” Ouviu, então do Senhor a resposta: “Irmão, alegra-te e rejubila muito em tuas doenças e tribulações, porque de resto tenhas-te tão seguro como se já estivesses no meu Reino”. Foi assim e em meio a estas aflições que exclamou:  “Então, é necessário que eu me alegre sobremaneira em minhas doenças e tribulações e me conforte no Senhor  e dê sempre graças a Deus Pai e ao seu único Filho Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo por tamanha graça e bênção que foi-me dada”. Foi então e assim em meio a tantos conflitos que compôs o famoso Cântico das Criaturas, também conhecido como o Cântico do Irmão Sol (Cf. CAs 83).

A graça do chamado, isto é, do encontro, tudo muda, tudo transforma e inaugura um novo tipo de relacionamento com tudo e com todos. Movido pelo vigor e encantamento desta presença o olhar do servo começa a ver o que seus olhos antes não conseguiam e nem podia ver: passa a ver, sentir, pensar, querer e fazer a partir do olho de seu Senhor. Por isso, conclui exclamando: “A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções?”

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini, ofm

Cross At Sunset With Sunlight And Orange Clouds
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