12.09.2020

Evangelho do 24° Domingo do Tempo Comum – Mateus 18, 20-35.

“Senhor, quantas vezes devo perdoar…?” (Mt 18,21)

Pouca gente, mesmo entre cristãos, compreende o sentido profundo do perdão.

A maioria pensa que é forma de anistia do sentimento, esquecimento, ato interno capaz de compreender o ofensor e desculpá-lo no fundo do coração misericordioso; para uns o perdão significa passar por cima de um erro ou violência; para outros, o perdão é próprio das pessoas frágeis…

De fato, o perdão não se encaixa confortavelmente dentro dos padrões naturais do comportamento humano. Ele não nasce espontâneo dentro do coração do ser humano.

A capacidade de perdoar a si mesmo ou aos outros é a marca registrada de uma personalidade madura.

Representa considerável avanço em relação ao mais primitivo desejo de vingança, retaliação e revide.

O perdão ataca, com todo vigor, aquilo que parece ser uma lei de nossa história. Isso porque a lógica que regula as relações inter-humanas é regida pela lei do mais forte, ou, no melhor dos casos, pela lei da reciprocidade, da equivalência, como norma de justiça.

No perdão, assume-se uma atitude que não contabiliza mesquinhamente o que se fez; deve-se ter um gesto inovador, um gesto criativo. Caso contrário, fica-se prisioneiro da lógica repetitiva da violência. Perdoar é ir além do princípio de retaliação. Por isso é uma atitude atrevida e ousada.

O perdão representa a inovação: cria espaço onde já não impera mais a lógica da norma judiciária.

Perdão não é esquecimento do passado, é o risco de um outro futuro que não aquele imposto pelo passado ou pela memória ferida. É convite à imaginação. É preciso aventurar-se no encontro com o outro.

Quem perdoa sabe estar correndo um risco, abandonando o ajuste de contas pela força ou então renunciando à força do direito. Mas sabe também que, sem esse risco, a história não terá nenhum futuro e a violência irá se repetindo indefinidamente.

Sabemos que a violência não tem regra em si mesma, é pura repetição. Já o perdão quebra a lógica do “olho por olho, dente por dente” e cancela o movimento repetitivo da violência. Quem perdoa sai fora desse jogo, arriscando a própria vida. O perdão quebra a cadeia lógica própria das relações humanas, submetidas ao sistema de equivalência da justiça (cf. Mt. 5,38-42).

O seguidor de Jesus, ao entrar em sintonia com o Deus fonte do perdão, ultrapassa toda imposição da justiça legal e abre espaço a uma nova relação com o outro. Assim, o perdão, transformando as relações humanas, possui a capacidade para revelar o rosto original de Deus.

O perdão é um ato não-humano, parece mesmo ser um ato puramente divino. Joan Chittester chama o perdão “o mais divino dos atributos divinos”. “Perdoar – ela afirma -é ser como Deus”. Mas este ato divino nos é revelado que ele está ao nosso alcance, porque Deus nos convida a ele. O perdão é divino porque, para o ser humano, ele é verdadeiramente divino em seus efeitos e em seu próprio processo.

Por isso, Jesus insiste fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a vida foi ferida. Como presença visível do perdão, Jesus se dirige a cada um com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer conduzir a todos para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja exposta ao Seu Amor.

Perdão é, em última análise, uma forma de amor, um amor que acolhe o outro na sua fragilidade.

Vai ao encontro do causador da ofensa com uma compaixão que brota de uma consciência das próprias limitações, abrindo um novo tempo, sem o veneno do ressentimento e da amargura.

O perdão é superlativo do amor.

Reinhold Niebuh descreveu o perdão como a “forma final do amor”. Perdão é amor que reconstrói o passado. Só quem doa amor ao ofensor dá-lhe as condições profundas de contrição, compunção, compaixão e arrependimento, as quatro vias através das quais o ser humano pode renascer de si mesmo e das trevas, trocando a morte pela vida.

Por ser o gesto mais difícil e elevado, o perdão é a única forma de permitir ao ofensor a entrada de amor no seu coração. Qualquer forma de cobrança, punição e vingança reforça a crueldade do ofensor e, de certa forma, vai fazê-lo sentir-se justificado.

Por isso, a originalidade do cristianismo está na descoberta da grandeza do ser humano, no exercício da única força capaz de mudar o mundo: o amor real. Não há revolução maior.  O perdão, então, re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e a vida que as rodeia.

O perdão é uma experiência forte que re-conecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de dores, de sentimentos feridos, de auto-agressividade. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a longo prazo.

Podemos falar, então, que o perdão ativo é terapêutico pois desencadeia um processo de conversão, mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a interioridade à alteridade.

O perdão reconstrutor, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições… e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis… É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para desvelar nossa própria interioridade.

A força criativa do perdão põe em movimento os grandes dinamismos da vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.

Por isso, o perdão é expansivo, ele abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ele não se limita ao erro, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo; ele destrava a vida, potencializa  o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido.

É gesto gratuito e positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, que se torna hábito de vida: até “setenta vezes sete”.

O perdão é aquele que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas. Não apenas afetivo, mas efetivo. Não apenas implica mudança na disposição da pessoa que perdoa, mas leva também a modificar a situação da pessoa perdoada. O perdão liberta as pessoas para poderem cuidar de outras questões importantes na vida; é uma obra de amor para com o outro e para consigo mesmo.

O ser humano é quebradiço por dentro e por fora. Mas o perdão o redime, depositando nele algo que é maior que sua fragilidade. Trata-se de um dinamismo que o ressuscita, o vivifica e o resgata.

O que era sucata, torna-se material para a construção do ser humano novo; o que era motivo de vergonha, agora é impulso confiante e esperançoso; o que era sinal de morte, agora ressurge para uma vida nova. A novidade interior se dinamiza para fora e configura, por sua vez, a modalidade do comportamento diante dos outros. Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.

Na oração:

O caminho para a libertação, a conversão e a reconciliação conduz a uma nova identidade. Esta se revelará e será experimentada no “colóquio de misericórdia”, com os olhos fixos no Crucificado: que fiz por Cristo? que faço Cristo? que farei por Cristo?

– Fazer “memória” dos momentos em que você experimentou a força criativa do perdão do outro, ou foi presença por onde fluiu o verdadeiro perdão.

Reflexão elaborada por Adroaldo Palaoro SJ