29.01.2021

4º Domingo do Tempo Comum

Leituras: Dt 18,15-20; Sl 94; 1Cor 7,32-35; Mc 1,21-28

Tema-mensagem: Jesus inaugura sua vida pública e missão com um en­sinamento novo porque nasce da autoridade de sua própria pessoa de Filho de Deus e comprovado pelas suas obras de misericórdia.

Introdução

Toda história do Antigo Testamento vem marcada pela promessa, por parte de Deus, de conceder a seu Povo um grande profeta, um segundo Moi­sés, um novo Elias. Essa promessa concretiza-se e consuma-se na Pessoa de Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo e da bendita Virgem Maria.

  1. A antiga promessa de um profeta semelhante a Moisés (Dt 18,15-20)

A Liturgia da Palavra deste Domingo começa com a proclamação de um trecho do Deuteronômio, no qual Moisés falou ao Povo dizendo: ‘O Senhor teu Deus fará surgir para ti, de tua nação e do meio de teus irmãos, um pro­feta como eu’ (Dt 18,15).

O Deuteronômio procura mostrar que a origem do profeta está ligada essencialmente à teofania sinaítica, mais precisamente quando o povo, aterro­rizado pela potência de Deus, pede-Lhe que não lhe fale diretamente, mas, por meio de um mediador (Cf. Ez 20,19; Dt 5,24). Este pedido foi aceito por Jahvé que, a partir de então, falará através de Moisés e, posteriormente, através dos profetas.

O profeta será sempre um homem tomado do meio dos homens e possuído por Deus, a fim de servir a esse a mensagem divina. A essência do profeta não está, pois, na capacidade de prever e anunciar o futuro. Se isso, por vezes, acon­tece, é porque, por estar profundamente ligado a Deus, o profeta adquire Dele também o olhar que tudo vê como presente, tanto o passado como o futuro.

Como tal, o profeta será e deverá ser um homem essencialmente de Deus, jamais do mundo. Por isso, o Senhor ordenara a Moisés que proclamasse: Está bem o que disseram. Farei surgir para eles, do meio de meus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca minhas palavras e ele lhes comu­nicará tudo o que eu mandar (Dt 18,17-18).

É admirável que, por ocasião da instituição do profetismo, por duas vezes, Deus insista em proclamar que fará surgir para seu povo um profeta semelhante a Moisés; um homem não comprometido com os centros políti­cos ou religiosos, a fim de que seja, única e exclusivamente, o porta voz de sua palavra. Por isso, a tradição judaica sempre esperou o Messias como um novo Moisés (At 3,22-23; 7,37; Jo 1,17; 5,45-47); a tradição cristã sempre viu e tem Jesus Cristo como o último, o único profeta; e a Igreja, por sua vez e finalmente, sente-se chamada a prolongá-lo através de seu Corpo que são os fiéis.

No Evangelho de João, na sua Oração Sacerdotal, dirigida ao Pai na noite em que ele foi entregue, Jesus diz: “Manifestei o Teu nome aos homens que do mundo Me deste (Jo 17, 6). Eu lhes dei a conhecer o Teu nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja neles” (17, 26). Joseph Ratzinger (Papa Bento), num de seus livros, diz:

É óbvio que Jesus, com essas palavras, Se apresenta como o novo Moisés: leva ao fim aquilo que teve início com Moisés na sarça ardente. Deus revelou a Moisés o seu “nome”. Esse “nome” era mais do que uma simples palavra. Significava que Deus Se dei­xava invocar, entrara em comunhão com Israel. Assim, ao longo da história da fé de Israel, foi-se tornando cada vez mais evidente que, por “nome de Deus”, se pretendia aludir à sua “imanência”: ao seu “estar” no meio dos homens, um “estar” em que Ele Se encontra totalmente presente e, todavia, transcende infinitamente a tudo o que é humano e terreno (…). A revelação do nome é um modo novo da presença de Deus entre os homens, um modo novo e radical em que Deus Se torna presente no meio dos homens. Em Jesus, Deus entra totalmente no mundo dos homens: quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14, 9).

  1. O ensinamento de Jesus e sua autoridade (Mc 1,21-28)

Nestes primeiros Domingos do Tempo Comum do ano litúrgico, esta­mos celebrando o início da vida missionária de Jesus. Hoje, este início se dá através do impressionante e admirável episódio na sinagoga de Cafarnaum, local, onde, no dia sagrado do sábado, se faz o ensino oficial da Lei e sua interpretação pelos mestres autorizados. É dentro deste velho ensinamento e desta envelhecida autoridade que Jesus começa a lançar as raízes de seu novo ensinamento, cuja fama se espalha rapidamente por toda a região.

2.1. Um ensinamento novo, feito com autoridade

Marcos começa assinalando que o acontecimento que vai narrar se deu na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado (Mc 1,21). Sábado era o dia sa­grado, destinado a recordar, celebrar e agradecer as maravilhas que Deus ope­rara outrora em favor de seu Povo, principalmente a libertação da escravidão egípcia; dia para se proclamar e ouvir de novo a Lei que Jahvé lhe havia dado e o compromisso, a aliança que ele, seu povo, havia assumido. Tudo, porém, em vista de um novo Sábado, de uma nova Lei, de uma nova libertação que se daria com a Vinda do Messias. É com esse memorial, como pano de fundo, que Marcos insiste em afirmar que Jesus se pôs a ensinar, mas não diz quais ensinamentos. Acentua, porém, por duas vezes, que, ao contrário dos escri­bas, seu ensinamento era com autoridade (Mc 1,22).

Usualmente entendemos autoridade como poder de mando, de imposição. Em seu sentido originário, porém, autoridade, como a palavra autor, autoria, procede do verbo latino “augere”, que significa, literalmente, aumentar, ou melhor, fazer aumentar; indica, portanto, o vigor daquilo ou daquele que, a modo de uma mãe gestante, faz o filho aparecer, crescer. Assim, por exemplo, Miguel Ângelo não é propriamente o criador, mas apenas o autor, isto é, aque­le que trabalhou ardorosa e apaixonadamente para, do meio de um bloco de mármore, fazer aparecer “La Pietá”. Por isso também, São Francisco nunca se diz fundador da Ordem, mas apenas servo, ministro e irmão dos irmãos, aos quais deve servir as odoríferas palavras do seu Senhor (Cf. 2 CF 2).

Ora, esse era ou foi o novo ensinamento de Jesus: fazer aparecer a Boa Nova do Pai nas pessoas, principalmente, nos pecadores, marginalizados, do­entes, pobres, abatidos; fazer aparecer sua verdadeira identidade de filhos de Deus e membros legítimos e privilegiados da comunidade do Povo de Deus. Assim, antes de um herói, artista ou ator, Jesus se faz de palco sobre o qual, à semelhança de nossa irmã e mãe terra, cuida, sustenta as criaturas para que cada uma possa aparecer, se apresentar, mostrar sua identidade e fazer a festa da vida da irmandade dos filhos de Deus. Mas Ele, como palco, fica escondido, debaixo, sustentando a tudo e a todos. Mais adiante, na Última Ceia e na Cruz, se apequenará e se abaixará mais ainda, fazendo-se pão para ser comido e vinho para ser bebido: Tomai e comei… Tomai e bebei…

Mas, de onde lhe vinha essa autoridade? Nada de fora, mas de sua pró­pria pessoa. E isso era um escândalo para os fariseus e maiorais de Israel, porque Jesus era um simples e pobre nazareno, que jamais havia frequentado alguma escola escriturística. No entanto, o que sai da boca d’Ele não são dis­cursos vazios, palavras ocas, meras instruções ou interpretações da Lei, mas a própria Lei em sua essência: o amor a Deus e sua misericórdia. Ao contrário dos escribas e mestres da Lei, não era um vendedor de doutrinas, de espiri­tualidades, de Religião. Ele mesmo era a Lei e a Vida. Tudo isso acontecia, porém, por causa de sua profunda, íntima, direta e imediata comunhão com o Pai. Por isso, exclamava: “Eu e o Pai somos um só! (Jo 10,30). O meu Pai trabalha sempre e eu trabalho com Ele!” (Jo 5,17).

Era por essa razão que sempre, antes de começar um milagre, invocava seu Pai e, após sua realização, fugindo dos aplausos do mundo, voltava para sua intimidade, retirando-se para o alto das montanhas, para o deserto ou para o meio do mar.

2.2. A autoridade aparece na cura de um homem possuído pelo espírito impuro

À cena do ensino segue a da cura de um homem possesso de um espírito impuro (Mc 1,23). Diz o texto que esse impuro está dentro da sinagoga, dentro da Igreja, diríamos nós, hoje. Realiza-se assim, em Jesus, o que Jahvé já havia anunciado pelo profeta Jeremias acerca do verdadeiro e futuro profeta: que viria para arrancar e demolir, para destruir e abater, para edificar e plantar (Jr 1,10). Por isso, a admiração e o espanto de todos: “O que é isso? Um en­sinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus; e estes lhe obedecem” (Mc 1,27).

Até então, a Lei, a sinagoga, o templo era o lugar privilegiado do encontro do judeu com Deus e sua vontade. Observar a Lei era cumprir a vontade de Deus. Com o tempo, porém, em vez de olhar para o Senhor da Lei e da Reli­gião, os escribas e doutores apegavam-se cada vez mais e tão somente à letra e às suas inúmeras interpretações e codificações. Por isso, não conseguem ver que Jesus, agora, passa a ser a única Lei, a única Religião. Ele se torna o resumo de todos os profetas e de toda a Lei. Por isso, suas palavras vêm acompanhadas com o poder do perdão e da cura como acontece com o homem impuro do Evangelho de hoje.

Essa cura toca na essência da missão de Jesus. Homem “impuro”, ou­tros traduzem como “mau”. Tanto faz. Um como outro significa que estamos diante de alguém que, embora dentro da sinagoga, dentro da Igreja, não está em comunhão nem com ela, a Igreja, e muito menos com Deus. É como vinagre em copo de azeite. Impossível a mistura, a comunhão. Impossível porque a Lei (o amor de Deus), a sinagoga (o Povo da Aliança) havia rompi­do com sua origem. A Lei, em vez do amor de Deus, havia se transformado em mero instrumento de auto justificação. A sinagoga, em vez de encontro jubiloso do Povo da Aliança, se transformara numa assembleia de sober­bos, que se preocupavam apenas com as aparências, pretendendo alcançar a justificação pelas suas orações, jejuns e observâncias da Lei e não pela misericórdia de Deus.

Nosso Papa Francisco chama este espírito impuro de “Mundanismo espiritual” (CF EG 9-97) e, em profunda sintonia com o Evangelho, entende que a primeira missão da Igreja é cuidar das pessoas, cuidar da criação (Cf. LS). De fato, Jesus ao enviar os Apóstolos pelo mundo, não os envia para fazer grandes e pomposas Liturgias, elaborar teologias cada vez mais sofisticadas, muito menos para julgar ou condenar, mas, pura e simplesmente, para curar (no latim: cuidar a modo de mãe que cuida do seu nenê) os enfermos, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos.

  1. Permanecer junto ao Senhor sem outras preocupações (1Cor 7,32-35)

Na segunda leitura, São Paulo parece responder a uma pergunta, ou questão, vinda do seu pequeno grupo, a fraternidade de auxiliares imediatos na obra evangelizadora. Aparentemente, o tema parece ser a questão do celibato ou do casamento. O que é melhor para um colaborador imediato do Apóstolo: casar ou permanecer solteiro?

No entanto, a questão maior e principal do Apóstolo não está no casar ou não casar, mas que, em ambos os casos, o cristão deve estar sempre imbuído do fervor e da dedicação apostólica. Tanto um como outro, casado ou solteiro, deve ter bem presente que, a exemplo de Cristo, que suportou as tribulações da Cruz, só se pode construir a Igreja, a fraternidade, suportando as muitas tribulações, confrontos e desafios, tanto internos, da própria comunidade, quanto externos, vindos dos inimigos, dos pagãos.

Por isso, Paulo insiste que, tanto num como noutro estado, existem as tribulações. Ou seja, as tribulações são ocasiões para o cristão participar da glória da Cruz de Jesus Cristo. Viver em contínuo confronto com as forças desse mundo, em vez de nos separar, nos coloca cada vez mais próximos e íntimos do amor de Cristo. E é isso o que caracteriza a essência do “ser apostólico”, e não o ser solteiro ou casado. As tribulações, os sofrimentos e a Cruz são o cimento que une as pedras, os membros do edifício da comunidade cristã.

Por isso, Paulo termina dizendo: O que eu desejo é levar-vos ao que é melhor, permanecendo junto ao Senhor, sem outras preocupações (1Cor 7,35)Ou seja, tanto lá como cá, o que importa é estar junto do Senhor e de sua luta, comungando de sua Cruz, para combater todo tipo de impureza mental que desagrega, porque deseja ou quer uma comunidade só de puros afastando dela os doentes e pecadores. Nesse sentido, impuro não era aquele homem do Evangelho de hoje, mas os judeus daquela sinagoga que se consideravam puros e merecedores da graça de Deus.

Conclusão

Todo aquele que, de uma ou de outra forma, no seguimento de Jesus Cris­to, se assemelhar à sua Pessoa, como o cristão, toma parte dessa sua vocação e missão profética. Por isso, se diz que toda Igreja e todo cristão é e deve ser profeta pelo seu testemunho de vida autenticamente cristão-evangélico.

Por isso, se a Igreja de hoje, e de sempre, quiser recuperar e fortalecer sua autoridade, não há como, senão voltar a ser profeta, fazendo o que nosso Mes­tre ensinou e fez: tornar-se um “hospital de campanha”, diz o Papa Francisco. Mas, para isso não pode jamais deixar de imitar o mestre: estar unido a Ele, como Ele estava unido ao Pai, fonte primeira e última de toda a autoridade de todo e qualquer profeta ou evangelizador.

Além do mais, é necessário, também e primeiramente, sempre de novo, segundo o Papa, que nos purifiquemos do “Mundanismo espiritual”: uma tremenda corrupção, com aparências de bem… Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa, vazia de Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho! (EG 97).

Hoje, podem e devem ser vistos como sinais proféticos os inúmeros e, por vezes, pequenos gestos de cuidado para com os desvalidos e abandonados, como as crianças, os velhos, os drogados e migrantes sem pátria; pequenos gestos de cuidado para com nossa Casa Comum, a mãe e irmã Terra, como limpar os riachos poluídos de todo tipo de lixo, não usar agrotóxicos, etc.

Mas, o profetismo ecológico só vingará se houver a consciência de uma origem comum, duma recíproca pertença e de um futuro partilhado por todos (LS 202), o que implicará, evidentemente, na aceitação de que todos e tudo te­mos um Único Pai Comum. São Francisco, por exemplo, movido pela Paixão do Cristo crucificado, costumava retirar do caminho os vermezinhos para que não fossem pisoteados; cuidava dos leprosos com as próprias mãos e ousou ir ao encontro do sultão só com as armas da Cruz. Sua profecia, a exemplo do Mestre, era sua vida.

Por isso, para mostrar que a melhor profecia é a que vem da vida, São Francisco gostava de dizer, por exemplo, que o Grande Profeta concedeu aos frades a graça de associá-los à sua missão, tornando-os, também eles, profetas pelo seu estilo de vida de irmãos menores, vivendo como peregrinos e foras­teiros (Cf. 2C 71), felizes por estar entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos de rua (RNB 9,2).

(Frei Dorvalino Fassini, OFM)