27.04.2019

2º DOMINGO DA PÁSCOA OU DA DIVINA MISERICÓRDIA

Brescia, Italy - May 22, 2016: Brescia - The painting  The Doubt of St. Thomas in church Chiesa di San Faustino e Giovita by unknown artist of 16. cent.
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Introdução

O mistério pascal é de tal grandeza e profundidade que a Igreja faz dele um grande Domingo de cinquenta dias, uma semana de sete semanas. Hoje, através do famoso Evangelho de Tomé, o Dídimo, a Igreja nos convida a reconhecer, amar, agradecer e celebrar a Misericórdia com a qual Deus nosso Pai através dos braços de seu Filho estendidos na cruz abraçou a cada um de nós, a cada uma de suas criaturas. Por isso, este Domingo é chamado também de “Domingo da Divina Misericórdia”.

  1. Ao anoitecer daquele dia Jesus entrou e pôs-se no meio deles

No mesmo dia, o primeiro da semana, em que Maria Madalena vira o Senhor, os Apóstolos, também tiveram a graça de vê-lo. Por isso, o primeiro dia da semana foi de tão grande repercussão no coração dos discípulos que, mais tarde, passaram a chamá-lo de domingo: “dominica dies” (dia do Senhor). Por isso, também, até hoje, a Igreja celebra a Páscoa não só uma vez por ano, no tríduo pascal, mas em toda a semana, todos os domingos: o dia do Senhor.

A aparição de Jesus aos Apóstolos deu-se ao cair da tarde, isto é, no momento em que a noite se avizinha com suas trevas e ameaças do desconhecido. O mesmo destino de morte que sobreveio ao Mestre também podia sobrevir aos discípulos. Seus corações estavam pesados, tendiam para baixo, para o abismo do nada negativo. Tudo parecia ter sido em vão e a morte pareceria ser a última palavra sobre tudo o que eles viveram com Jesus. Tudo parecia terminar num grande nada.

As densas trevas da sexta-feira santa ainda pareciam reinar sobre eles. Um raio de luz, de improviso, porém tinha apontado naquelas trevas: “Eu vi o Senhor” (Jo,20,18) anunciara Maria Madalena. Mas tal anúncio era tão improvável e incrível, tão inusitado que parecia impossível. Crer na Ressurreição do Senhor era extraordinário demais não apenas para eles, mas também para todos os homens. Algo simplesmente impossível.

No entanto, o inesperado, o inusitado, aconteceu: Jesus veio, entrou e se pôs no meio deles. Cumpria, assim sua promessa: “não vos deixarei órfãos, eu virei a vós. Ainda um pouco e o mundo não me verá mais; vós, porém, me vereis vivo, e também vós vivereis” (Jo 14, 18-19). A visão do Cristo ressuscitado não foi dada ao mundo, mas aos discípulos somente. Se outrora se manifestara ao mundo de modo terreno, agora se manifesta aos discípulos na sua realidade gloriosa, celeste, inaugurando assim um novo modo de viver assentado na glória da Paz, do Bem, do perdão e da misericórdia.

  1. A Paz esteja convosco

Como em sua primeira aparição no mundo – no Natal – também aqui, em sua Ressurreição, a primeira saudação é a paz: “A paz esteja convosco”. Não fiquem atordoados, alarmados, desesperados; que cessem as dúvidas em vossos espíritos. “Enquanto falava, ele lhes mostrou as mãos e o lado”. Isto é: este que lhes fala é o mesmo que por eles se deixou crucificar, aquele cujas mãos e pés foram trespassados pelos cravos, aquele cujo lado foi aberto pela lança. O Ressuscitado é o Crucificado que continua crucificado. “A paz de Jesus Cristo é a cruz (…). O amor de Deus pelos homens leva o nome de cruz e de seguimento, mas, com estes, também aqueles de vida e de ressurreição. ‘Quem perde a sua vida por minha causa, a reencontrará’” (D. Bonhoeffer). O Ressuscitado é o mesmo Crucificado, o Encarnado. Eis o homem. 

Ecce homo – olhai o homem tomado por Deus, julgado por Deus, por Deus despertado a nova vida, olhai o Ressuscitado! O sim de Deus ao homem adveio à sua consumação através do juízo e da morte. O amor de Deus pelo homem foi mais forte do que a morte. Um homem novo, uma nova vida, uma nova criatura foi criada pelo milagre de Deus. ‘A vida trouxe a vitória, derrotou a morte’. O amor de Deus se tornou a morte da morte e a vida do homem. Em Jesus Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado a humanidade se tornou nova. O que aconteceu a Cristo aconteceu a todos, porque ele era homem. O homem novo foi criado (D. Bonhoeffer).

Os discípulos olham para ele e o veem. Mas a fé deles vacila diante do que veem. Ele lhes mostra, então as mãos traspassadas pelos cravos, e a pleura traspassada pela lança. O corpo do Cristo ressuscitado conserva as feridas da Cruz. Por que? Agostinho responde: elas foram conservadas para curar os corações dos que duvidavam. Em verdade, não só Cristo, o Filho, foi traspassado, mas também o Pai que nos deu seu Dom maior e mais íntimo. Um Deus que é capaz de tanta compaixão só pode ter um nome: “Misericórdia”, diz nosso Papa. Começava a reinar assim, no meio do mundo, no coração dos discípulos a força da não-força: a misericórdia, o perdão de um Deus crucificado-ressuscitado.

Cumpria, assim o que prometera outrora: “a vossa tristeza se converterá em alegria” (Jo 16, 20). Cristo é a fonte da alegria dos discípulos. O Crucificado é o homem da perfeita alegria – Isso aprendemos com Francisco de Assis. Trata-se de uma alegria que se mantém mesmo na dor mais profunda porque sua origem é o amor, a paixão do Pai pela humanidade.

Jesus, então, pela segunda vez, diz: “A paz esteja convosco”. Esta repetição significa confirmação. Era preciso confirma-los na paz da cruz porque o mundo não cessaria de fazer guerra contra eles. Trata-se de uma paz diversa da paz do mundo: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Que o vosso coração cesse de se perturbar e de temer” (Jo 14, 27). A paz de Cristo não é outra coisa senão fruto do encontro, do abraço com o Pai, a divina Misericórdia, que a todos e a tudo abraça com amor entranhado. Cristo, torna-se, assim o Princípio da nova criação, o Príncipe da Paz (Is 9, 5).

  1. A quem perdoardes os pecados serão perdoados

À confirmação da paz segue a confirmação da missão apostólica: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Assim como Ele – o Filho é o Apóstolo (o enviado, a testemunha) do Pai – agora eles, os discípulos, são os apóstolos, as testemunhas do Filho. Com sua Ressurreição, começa, então, propriamente, o envio, o testemunho dos discípulos, o tempo da missão, do testemunho da Igreja. Se o envio de Cristo se deu entre as dificuldades da paixão, o envio dos discípulos se dará em meio às dificuldades da perseguição e do ódio do mundo. E, no entanto, por entre um mundo que lhes faz guerra, eles vão como portadores da paz, da misericórdia, do perdão.

Por isso e para isso Jesus dá-lhe como penhor e garantia a presença do Paráclito, o consolador e o defensor, o Espírito Santo. “Tendo assim falado, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados. A quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”.

  1. Tomé o dividido conduzido ao uno

Entra em cena, então, Tomé, chamado Dídimo, entendido, usualmente, como gêmeo, mas que poderia significar também duplo no sentido de dúplice pela dúvida. Em grego, duvidar é “dipsychéo”, isto é, ter a alma dividida. A dúvida, quando toca em questões essenciais para a vida do homem – e este é o caso da fé cristã – é uma divisão, uma duplicidade da alma. O contrário da dúvida é a simplicidade (haplótes), que significa ter a alma una, inteiriça, sem dobras (simplex = sine plex). Tomé, que parecia tão decidido a seguir Cristo até a morte agora, diante do testemunho da Ressurreição por parte dos seus colegas, mostra-se dividido. O que eles narravam era extraordinário demais, inusitado demais, inesperado demais, para que ele aderisse com todo o seu ser, com todo o seu coração. Por isso exclamara “Se eu não vir em suas mãos a marca dos cravos, se eu não enfiar o meu dedo no lugar dos cravos e não enfiar a minha mão no seu lado, não acreditarei! ”.

Oito dias depois, a Tomé foi-lhe dada esta graça. Jesus aparece de novo no meio dos Onze e, então, faz o convite a Tomé: “Aproxima o teu dedo aqui e olha as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado, deixa de ser incrédulo e torna-te um homem de fé”. O convite de Cristo a Tomé não é propriamente uma reprovação, um “puxão de orelha” pela sua incredulidade, mas sim o apelo do Deus misericordioso que suplica: aceita o meu amor – vê as cicatrizes do meu combate com a morte, combate que enfrentei só por causa de vocês; entra em contato com meu amor, a misericórdia do Pai e, assim, torna-te o que tu és, não por teus méritos, mas por graça minha, isto é, seja fiel, unido a mim e ao Pai. Assim, Tomé, deixaria de ser o Dídimo, o duplo, no sentido de “o dividido”, para ser o Dídimo, o duplo do Senhor, isto é, o seu “gêmeo”, quer dizer, aquele que é uno em si como é uno em si o Senhor; aquele que é uno, isto é, inteiro e simples, na unidade com o Um, isto é, com Deus, o Pai. Ser um no Um, um com o Um, como o Filho é um com o Pai, eis a máxima realização do discípulo. Ser cristão é ser Filho no Filho, ser filho com o Filho, ser filho como o Filho, e isso é ser um com o Um, isto é, com o Pai.

Os Padres da Igreja se alegram com a ausência e a dúvida de Tomé. São Gregório Magno diz algo assim: quando o discípulo incrédulo (leia-se: infiel) apalpava as feridas do Mestre, eram curadas em nós as feridas de nossa própria incredulidade (leia-se: de nossa própria infidelidade). Ele ainda diz que a incredulidade de Tomé foi mais proveitosa a nós do que a credulidade de todos os outros discípulos juntos. Pois a sua incredulidade se tornou a ocasião para depor a nossa dúvida, isto é, a nossa divisão de alma no seguimento de Cristo, para confirmar o nosso espírito no amor do Mestre.

A Tomé Jesus exibia as feridas que ele adquiriu no duro combate da cruz. Tais feridas não são deformidades, diz Agostinho, mas marcas da dignidade do combatente, que, aparentemente foi derrotado, mas cuja derrota transmutou-se em vitória e glória, pois sua morte tornou-se a morte da morte (a negação da negação). Ao ver e tocar o Senhor Tomé exclama: “Meu Senhor e meu Deus”. Tomé, assim, vendo e tocando o homem, o Senhor e Mestre, que ele seguira desde a Galileia, confessava o Deus, a quem o homem não pode ver com os olhos corporais nem tocar com as mãos, mas pode ver com os olhos da fé – que não é cega, mas visionária, pois não vê de menos, vê demais; e pode tocar com o amor, à mesma medida que se deixa tocar, atingir, pelo encontro com a pessoa de Cristo.

Tomé viu e tocou o homem, confessou e adorou Deus. Sua confissão de fé se juntou ao testemunho dos demais Apóstolos. Deste testemunho nascem todos os demais bem-aventurados que creem sem terem visto: “Porque me viste, creste; bem-aventurados os que não viram e contudo creram”. Gregório Magno, com alegria, diz que nós estávamos compreendidos nesta bem-aventurança. Esta bem-aventurança nos pertence! Não pertence aos Apóstolos! Nós somos, pela fé, os que não viram e creram. Neste sentido nossa fé é maior que a dos Apóstolos e das mulheres.

Os últimos versículos do evangelho de hoje trazem o epílogo, o resumo do evangelho de João: “Jesus operou ante os olhos de seus discípulos muitos sinais que não estão escritos neste livro. Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. João disse pouco daquilo que Jesus tornou visível e deu a conhecer aos seus Apóstolos (os sinais). Mas este pouco é o suficiente para nos atrair à fé, ou, então, para nos confirmar na fé. A fé, no entanto, é o nosso acesso à vida eterna, à misericórdia, que é o conhecimento de Deus e do Filho que ele enviou. Conhecimento que significa co-nascimento.

Conclusão

São Francisco, no Ofício da Paixão, ao compor o salmo para as matinas do Domingo da Ressurreição, escreveu: “Naquele dia enviou o Senhor a sua misericórdia e à noite a sua canção. Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e n’Ele nos alegremos (…)”. E, no salmo que ele compôs para a hora prima, ele põe na boca do Filho estas palavras: “Enviou Deus sua misericórdia e sua verdade arrancou minha alma dos inimigos meus fortíssimos e dos que me odiaram porque prevaleceram sobre mim (…)”.

Na Carta a um Ministro toda perpassada pela exortação à misericórdia conclui São Francisco: Assim quero saber se amas o Senhor […]: Não haja no mundo inteiro Irmão que tenha pecado até não poder mais que, após ver teus olhos, se afaste sem a tua misericórdia, se misericórdia buscar. E se não buscar, pergunta-lhe se não quer misericórdia (CM). 

O papa Francisco, por sua vez, insiste que nosso Tempo deve ser um tempo de misericórdia porque somos uma humanidade ferida, uma humanidade que possui feridas profundas, uma humanidade que não sabe como curá-las ou acredita que não seja possível curá-las (Cf. O nome de Deus é Misericórdia, pág.45). O evangelho de hoje diz que nossas feridas humanas só podem ser curadas pelas feridas do Deus-homem, pela vulnerabilidade e pela fraqueza de Deus, que é a vulnerabilidade da misericórdia. Mas, recordemos o que disse o Apóstolo Paulo, o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini