01.08.2019

Perdão de Assis

detail of a small medieval altar dedicated to St. Francis of Assisi
AlanStix64 – Istock

 

“Uma noite, do ano do Senhor de 1216, Francisco estava compenetrado na oração e na contemplação na igrejinha da Porciúncula, perto de Assis, quando, repentinamente, a igrejinha ficou repleta de uma vivíssima luz e Francisco viu sobre o altar o Cristo e à sua direita a sua Mãe Santíssima, circundados de uma multidão de anjos. Francisco, em silêncio e com a face por terra, adorou a seu Senhor.

Perguntaram-lhe, então, o que ele desejava para a salvação das almas. A resposta de Francisco foi imediata: “Santíssimo Pai, mesmo que eu seja um mísero pecador, te peço, que, a todos quantos arrependidos e confessados, virão a visitar esta igreja, lhes conceda amplo e generoso perdão, com uma completa remissão de todas as culpas”.

O Senhor lhe disse: “Ó Irmão Francisco, aquilo que pedes é grande, de coisas maiores és digno e coisas maiores tereis: acolho portanto o teu pedido, mas com a condição de que tu peças esta indulgência, da parte minha, ao meu Vigário na terra (Papa)”.

E imediatamente, Francisco se apresentou ao Pontífice Honório III que, naqueles dias encontrava-se em Perusia e com candura lhe narrou a visão que teve. O Papa o escutou com atenção e, depois de alguns esclarecimentos, deu a sua aprovação e disse: “Por quanto anos queres esta indulgência”? Francisco, destacadamente respondeu-lhe: “Pai santo, não peço por anos, mas por almas”.

E feliz, se dirigiu à porta, mas o Pontífice o reconvocou: “Como, não queres nenhum documento”? E Francisco respondeu-lhe: “Santo Pai, de Deus, Ele cuidará de manifestar a obra sua; eu não tenho necessidade de algum documento. Esta carta deve ser a Santíssima Virgem Maria, Cristo o Escrivão e os Anjos as testemunhas”.  E poucos dias mais tarde, junto aos Bispos da Úmbria, ao povo reunido na Porciúncula, Francisco anunciou a indulgência plenária e disse entre lágrimas: “Irmãos meus, quero mandar-vos todos ao paraíso!”

Celebrando o Perdão de Assis

Misericórdia, palavra tão querida a São Francisco, que a utiliza nos seus Escritos remetendo-a ao agir de Deus misericordioso e ao nosso agir com misericórdia. Sejam misericordiosos como é misericordioso vosso Pai” (Lc 6,36). A misericórdia, que devemos viver, está estreitamente ligada à misericórdia que Deus tem para conosco: o amor de Deus é a fonte inexaurível da qual emana a misericórdia a ser usada para com o próximo.

Só conseguimos amar na medida em que nos sentimos amados por Aquele que é o princípio de todo bem. A parábola que Jesus narra para responder à pergunta de Pedro “quantas vezes devemos perdoar?”, condena o comportamento do servo que não perdoa a pequena dívida ao seu companheiro, depois que o patrão lhe perdoou uma grande dívida.

A razão para perdoar é porque nós mesmos somos perdoados por Deus, como dizemos no Pai nosso: “perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido”. Aquele “como”, mais que indicar igualdade, indica a motivação profunda pela qual devemos perdoar aos outros: a partir da certeza de que Deus nos perdoa, nasce a exigência de perdoarmos: “como” Ele. É uma outra maneira de dizer que devemos ser misericordiosos “como” o Pai celeste.

Na medida em que nós, como Francisco, descobrimos que Deus “é o bem, todo o bem, o sumo bem e que somente ele é bom”, torna-se forte em nós a exigência de corresponder a este bem que recebemos, doando o bem que somos capazes. E, para nos tornarmos mais conscientes do amor que Deus tem por nós, para reencontrar a verdadeira fonte do compromisso e do amor para com o próximo, para reencontrar a força e a energia para doar toda a vida no serviço aos irmãos e para gerar paz e reconciliação, que são frutos do amor contemplado, somos convidados a cultivar o espírito de oração e devoção, a unir contemplação e ação.

Com o seu pedido ao Papa de uma indulgência extraordinária para a pequena igreja da Porciúncula, Francisco de Assis inventou uma nova maneira para celebrar a superabundância do perdão e da misericórdia de Deus para conosco. A “indulgência do Pai que por meio da Esposa de Cristo alcança o pecador perdoado e o liberta de todo resíduo da consequência do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor, muito mais do que recair no pecado” (MV 22).

Sempre que recebemos esta extraordinária indulgência do Pai, por meio da Igreja, também nós experimentamos a abundância de misericórdia sobre nós, para nos tornarmos capazes de misericórdia e de reconciliação para com os outros, nas situações concretas da vida. Francisco nos mostra exemplos esplêndidos desta capacidade criativa de promover paz e reconciliação.

Pensemos naquele episódio no fim de sua vida, no qual ele reconcilia o Prefeito e o Bispo de Assis, fazendo cantar o seu Cântico do Irmão Sol, com o acréscimo da estrofe do perdão. O antigo biógrafo, ao início desta história, nos diz que Francisco disse aos seus companheiros: «Grande vergonha é para nós, servos de Deus, que o Bispo e o Prefeito se odeiem de tal forma um ao outro, e ninguém tenha o cuidado de colocá-los em paz e concórdia» (Compilação de Assis 84).

Francisco não pensa que se trate de uma questão que não lhe diga respeito e sente vergonha pelo fato de que ninguém faça alguma coisa para levá-los à paz. Perguntemo-nos: sentimos vergonha, por que ninguém intervém para sanar os conflitos do nosso tempo? Sentimo-nos responsáveis, como Francisco, de levar paz e reconciliação, antes de tudo nas nossas próprias Fraternidades, quando existem divisões, assim como nas lutas políticas, religiosas, econômicas, sociais do nosso tempo?

É porque nos sentimos atingidos, pessoalmente, pela indulgência do Pai que nasce em nós a força, a coragem, a “loucura” de intervir, como pôde fazer um pobre enamorado por Deus: com o canto, não com um solene discurso e muito menos com a força.

Francisco, com a sua inteligente simplicidade, não convoca o Bispo e o Prefeito para buscar resolver as suas contendas. Francisco sabe bem que esta não é a sua via: ele, em vez disso, os convoca para escutar um canto, porque somente elevando o olhar mais ao alto, em direção à beleza de Deus, sob as asas da música, os dois rivais poderão reencontrar as razões mais elevadas para a paz.

Somos chamadas a encontrar caminhos para animar as pessoas e a cada uma de nós, à reconciliação e à paz com o testemunho da simplicidade, da beleza e do canto, da verdade, de relações fraternas e imediatas que remetem àquilo que é essencial, que levam a entender, como ao Prefeito e ao Bispo de Assis, que vale à pena viver na paz, relativizando os problemas concretos e escolhendo a via do perdão.

Que a celebração do Perdão de Assis, nos ajude a experimentar o salutar sentimento de promover paz e a concórdia na realidade na qual vivemos e nos ajude a encontrar maneiras novas para cantar um canto compreensível aos homens e às mulheres do nosso tempo.

Seja nossa vida este canto vivo de louvor a Deus de quem provém todo amor e torne-se provocação eficaz para construir paz e reconciliação.

(02 de Agosto 2019  Perdão de Assis.docx)