28.10.2017

Viver na unidade da caridade, que se opera no duplo amor: de Deus e do próximo.

Cropped image of woman comforting her friend

Introdução

Depois das controvérsias sobre o tributo a César (Cf. Mt 22,15-22) e sobre a ressurreição dos mortos (Cf. Mt 22,23-33), chega a controvérsia sobre o maior mandamento da Lei (Cf. Mt 22,34-40). No contexto do Evangelho de hoje, estão os debates dos dirigentes religiosos judaicos, sacerdotes e escribas, intérpretes da Lei, com Jesus. Seu objetivo é poder pegá-lo e entregá-lo à autoridade romana para, assim, ser condenado à morte.

  1. Dos fariseus e de seu fanatismo pelas leis e tradições

Quem no Evangelho de hoje toma a iniciativa da provocação são os fariseus: “Os fariseus, ouvindo falar que ele emudecera os saduceus, reuniram-se contra ele. E um deles, especialista na Lei, propôs-lhe uma questão para pô-lo à prova”.

Os fariseus, diferentemente dos saduceus e sacerdotes, que primavam mais pelos rituais do Templo, davam destaque à Lei, à Torah e a seus requerimentos em vista do povo comum. Desde sua obscura origem, no século I a.C., eles estão em tensão com os sacerdotes mais graduados e seu partido, o dos saduceus. O farisaísmo, tal como o conhecemos a partir da polêmica cristã, que aparece nos evangelhos, é uma decadência do modo de ser e de viver do fariseu originário. O que predomina neles é o legalismo, o rigorismo, que distancia o homem de Deus. E, acima de tudo, faz preferir sua autenticidade e santidade, à santidade de Deus; faz preferir a justiça própria à justiça de Deus, que é amor e misericórdia. É o fanatismo ético dos que se consideram a si mesmos como “justos”; é o fundamentalismo religioso dos que procuram se distinguir dos demais homens como os “pios”, os “puros”, os “separados”. Acerca deste fanatismo escreve Bonhoeffer:

O fanático crê ser capaz de opor-se ao poder do mal com a pureza da sua vontade e do seu princípio. Mas o fanatismo, dado que por sua natureza perde de vista a totalidade do mal e se lança como o touro contra o pano vermelho, antes que contra quem o segura, acaba por se enfraquecer e sucumbir. O fanático fariseu erra o alvo. O seu fanatismo, mesmo pondo-se a serviço dos outros bens da verdade ou da justiça, se perde antes ou depois no inessencial, nas pequenas coisas, e cai na rede do mais astuto adversário (Bonhoeffer, D. Ética, p. 56).

O fariseu, nos evangelhos, é o oposto de Jesus. Fariseu, ali, é todo o homem, enquanto todo o homem vive da consciência do bem e do mal. É o homem dividido, de duas almas (dipsychos). É o homem admirável que subordina tudo à consciência do bem e do mal, que julga severamente não só o outro, mas também a si mesmo, para honrar a Deus. São estes homens do conflito ético de ontem e de hoje que se voltam contra Jesus e sua Boa Nova, o reino dos Céus, a vontade do Pai que quer a misericórdia e não o sacrifício.

  1. Dois mandamentos num só

Pois bem, este fariseu indaga a Jesus: “Mestre, qual é o grande mandamento da Lei?” A hipocrisia é patente: por que chama Jesus de Mestre se não põe fé em suas obras, muito menos em sua pessoa? Por que quer prová-lo? E qual seria a prova? Não o sabemos bem. Talvez fosse apenas para desqualificá-lo como mestre perante o público, pois como estaria ele em condições de responder a tão importante questão se já por diversas vezes parecia não apenas não se importar com a lei, mas até ser um dos seus transgressores? Enfim, como o público podia ir atrás de um mestre que pouco ou nada entendia da Lei? De fato, este era um dos pontos altos de um bom religioso judeu: conhecer e observar item por item a Torah com seus 613 preceitos dos quais 365 eram proibições e 248 ações. Por isso, a pergunta do legista vai na direção da escolha de um dos mandamentos como sendo “o grande”, o “primeiro”.

A resposta de Jesus soa clara e certeira: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente’. Eis o grande, o primeiro mandamento. Um segundo é igualmente importante: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”. Jesus apresenta, pois, o duplo amor a Deus e ao próximo como sendo o resumo – o sumo, o ápice, o máximo, a fonte e o cume – da Lei e dos Profetas: Revelação divina do Antigo Testamento.

A resposta de Jesus não era nova, pois estava bem em consonância com Dt 6,5 no que diz respeito ao amor a Deus e com Lv 19,18 no que diz respeito ao amor ao próximo. Também sua unidade já havia sido aceita em Israel desde o Rabi Hillel (60 a.C – 6 d.C.). A novidade está, primeiramente, em insistir que deles “dependem” toda a Lei e os Profetas. Ou seja, sem eles, a exemplo da árvore, sem a raiz, a Lei e os Profetas inexistem. E em segundo lugar, a necessidade de conservá-los unidos e não apenas no nível de ensinamento acadêmico, mas também e principalmente, como princípio elementar, básico, fundamental da formação religiosa pessoal bem como da construção de toda a comunidade religiosa e civil. Assim, a originalidade da resposta está em apontar e convocar para a sua “originariedade” (vigor da origem). Ou seja, fugindo de problematização, e conflito proposto, Jesus procura reconduzir o legista à simplicidade originária da unidade do duplo mandamento do amor: Deus e, ao mesmo tempo, o próximo.

A exemplo do sujeito que por estar tão fascinado pelas árvores não consegue ver a floresta, os fariseus, presos às inúmeras leis, preceitos e proibições não conseguiam mais ver, seguir e admirar o princípio supremo, a raiz que as unia e justificava: Deus e os próximos. Ora, quando isso acontece, isto é, quando o homem vive sem um princípio unificador, perde sua unidade e vive fraccionado em mil e um compartimentos estanques dos quais tem que prestar contas através de uma consciência cada vez mais atormentada. Com uma divisão em tantos fragmentos insignificantes a vida vai se autodestruindo, uma vez que o homem, jamais poderá cultivá-la a contento. Era o que estava acontecendo no tempo de Jesus e (como não?), muitas vezes, hoje e sempre. 

O amor a Deus e o amor ao próximo como a si mesmo são um único imperativo: “amarás”, que deve se desdobrar no dia a dia, nas grandes e pequenas coisas, com tudo e com todos. Na verdade, como disse São Jerônimo, tudo o que Deus ordena – até mesmo o simples abrir ou o fechar de uma porta – é grande. E tudo o que ele ordena se resume na grandeza – na magnanimidade do amor. O Pseudo-Crisóstomo observa: Deus manda amar. Não exige o temor. Mas requer o amor.

Amarás, disse, e não temerás, porque amar é mais que temer; temer é próprio dos servos, e amar é próprio dos filhos. […] O Senhor não quer que os homens O temam de um modo servil, e como a um amo, mas que se O ame como pai, uma vez que concedeu aos homens o Espírito da adoção.

Um traço essencial deste amor é a gratuidade: não um amor que ama por dívida, como resposta a um mérito, mas que ama   por própria iniciativa, livremente, gratuitamente, de modo superabundante (perisson, diz o Sermão da Montanha – Mt 5, 46ss).  Por isso, o amor ao próximo se alarga universalmente para incluir o amor ao inimigo. Trata-se, porém, de um amor universal concreto. Isto é, a universalidade do amor não se degenera numa generalidade esquemática. Por isso, o latim em vez de amar usa o verbo “diligere” e o grego “agapáo”. “Diligere” e “agapáo” significa amar com diligência, com doação até com o sacrifício da própria vida, se for o caso, como muito bem aparece com Cristo, principalmente na Última Ceia e na Cruz.

  1. Amar no amor que é Deus: pedra fundamental para a constituição do novo Povo de Deus

Quem nos fala bem direta e concretamente desta dimensão universal do amor a Deus e ao próximo é a primeira leitura de hoje, tirada do livro do Êxodo; uma exortação que nos abre os olhos e o coração frente aos desdobramentos sociais, eclesiais e cotidianos da justiça do amor, que é misericórdia. No deserto do Sinai, o Senhor faz aliança com seu povo. É um pacto de amor. Este pacto inclui o dom dos mandamentos. Os mandamentos, recolhidos nas Dez Palavras (Decálogo), são para Israel o cerne da Torah, do ensinamento do caminho que conduz à vida. Os comandos de Deus são a expressão de seu bem-querer pelo seu povo. É por amar o seu povo que Ele dá as coordenadas do seu caminhar, para que este povo possa encontrar a terra boa e a vida plena e, assim, ser feliz. Os imperativos dos mandamentos, portanto, são mais que comandos de um Deus ciumento. São recomendações de um Deus amoroso, para a felicidade, para a bem-aventurança do seu povo. De sua misericórdia devia nascer cidadãos e religiosos atentos às aflições dos estrangeiros, dos órfãos, pobres e viúvas, enfim, um povo que deve brilhar entre os demais povos por sua misericórdia.

Quem, 1200 anos depois, compreendeu e concretizou este mandamento, de modo admirável, foi São Francisco com suas três Ordens, principalmente com a Terceira, composta só de leigos ou seculares. Quando estes, a fim de poder segui-lo e imitá-lo na reconstrução da Igreja e do mundo, vivendo no mundo e com as coisas do mundo, lhe pediram uma regra, ordenou-lhes o mesmo que Cristo ordena no Evangelho de hoje, acrescentando: “oh, quão felizes serão vocês se fizerem isto até o fim. Pois, então, sobre vocês repousará o Espírito do Senhor e vocês serão filhos do Pai celestial, esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Cf. ROFS). Foi observando e seguindo este mandamento que aqueles seguidores de São Francisco proporcionaram o surgimento de uma sociedade mais fraterna e justa, isto é, menos elitista e menos dividida entre “maiores” e menores”; uma sociedade desarmada (sem armas) e sem as beligerâncias e os intermináveis conflitos e guerras entre os castelos e seus príncipes.

  1. Amar a si mesmo

Além de amar a Deus e ao próximo, o grande mandamento ordena também que cada um ame a si mesmo. Amar a si mesmo parece tarefa fácil e agradável porque, à primeira vista, poderíamos pensar que esse mandamento estivesse nos convocando para dar vazão ao egoísmo: cuidar tão somente dos interesses e gostos próprios e subjetivos, particulares ou grupais e que São Paulo chama de “eu carnal”. O “eu” do homem é sempre e cada vez constituído numa forma de existência. O homem pode constituir o seu eu de modo “carnal” (egoísta) ou de modo “espiritual” (no sentido do si-mesmo pneumático). O eu da carne, porém não é o verdadeiro “eu” do homem porque, voltado unicamente para seus interesses egocêntricos, na maioria das vezes superficiais, não permite ao homem mergulhar mais para o profundo e íntimo do seu si-mesmo de onde ele pode constituír o outro e verdadeiro “Eu”, o “Eu” espiritual, voltado para os grandes e eternos valores, como, por exemplo: Deus, o perdão, a misericórdia, a Paz e o Bem e, acima de tudo, a vocação de ser e fazer-se imagem e semelhança de seu Deus, Pai e Criador (Cf. Rm 7,14-26). Amar a si mesmo significa, pois aprender a olhar para si como Deus o vê, o quer e o ama. Feliz o homem que vem a ser o que ele era em Deus, antes de ele existir, isto é, aquele homem que realiza aquele Eu que Deus concebeu para ele no intuito da criação, antes mesmo desse homem existir no tempo. Vir a ser o que somos em Deus, desde a eternidade, é nossa suprema bem-aventurança. Esse Eu originário é tudo, menos egoísta. Sua identidade não exclui a diferença, antes, a inclui, dela se nutre e a ela se volta, no amor.

Assim, ama verdadeiramente a si mesmo aquele que se abre ao outro: o outro de si (o si-mesmo no sentido do Eu espiritual), o outro do outro (o Tu), o outro do Totalmente Outro (Deus). O amor a si precisa, assim, ser subsumido no amor a Deus e no amor ao próximo. De fato, o melhor modo de amar a si mesmo e constituir a própria identidade é abrir-se à diferença do outro. Com efeito, a diferença do outro não anula, antes alimenta e enriquece, a identidade de cada homem. Por isso, ama realmente a si mesmo aquele que coopera com o amor de Deus e com o amor do próximo: aquele que ama o próximo como a um outro si-mesmo; aquele que ama a Cristo, que sendo Deus, o Totalmente Outro, que se fez, por amor a nós, nosso próximo, o Não-outro. Grande amor, porém, é aquele em que o homem já não ama a Deus por causa de si mesmo, mas que ama a Deus por causa de Deus, e que, por fim, ama a si mesmo por causa, isto é, causado pelo amor de Deus (Cf. São Bernardo: De diligendo Deo).

  1. Amar de todo coração de toda a alma e de todos o entendimento

Ao instituir e organizar seu Povo, Jahvé não apenas lhe confia o mandamento do amor, mas, também, o modo como deve ser observado: de todo o coração, de toda a alma e de todo a mente. São Boaventura, para explicar este modo de amar usa o exemplo do amor da esposa e o explica citando São João Crisóstimo: “Amar o Senhor de todo o coração significa não teres o coração inclinado ao amor de coisa alguma mais do que de Deus, não te deleitares na figura deste mundo nem nas honras nem nos pais, mais do que em Deus”.

Amar assim, significa, a exemplo do nosso coração corpóreo, inteiramente vazio de si mesmo, servir e acolher sem rachas, sem divisões, a todo o instante, sem parar, todas as criaturas e o Senhor Deus como nosso “único bem, o bem inteiro, o bem universal” (São Francisco).

“De toda a alma” segundo santo Agostinho, “consiste em amá-lo de toda a vontade, excluindo qualquer coisa em contrário; é fazer não o que queres nem o que aconselha o mundo nem o que sugere a carne, mas o que sabes querer o Senhor, teu Deus. Seguramente amas a Deus de toda alma, quando por amor de Jesus Cristo expõe de bom grado à morte, se necessário, a tua vida”. Quem ama assim jamais desanimará, jamais se frustrará ou se fragilizará. Pelo contrário, os desafios, a exemplo do senhor na cruz, tornam-se seu alento, coragem, vigor e as dificuldades suas grandes mestras.

Finalmente, ainda, “de todo entendimento” ou “de toda a mente”, segundo Santo Agostinho, significa “amar de toda a memória, sem esquecimento” (Cf. “De Perfectione Vitae, São Boaventura). Quem ama assim, se aproximará da raiz e do princípio de cada criatura ou acontecimentos uma vez que todas e todos nascemos e vivemos a partir do mesmo princípio (Cf. 2ª leitura do Ofício das Leituras da festa da Bem-aventurada Angelina de Montegiove, 13 de julho).

Conclusão

Mas, por que o amor é tão importante a ponto de Jesus proclamá-lo como o primeiro de todos os mandamentos? A razão é muito simples: porque Deus, o princípio, a origem, a fonte de tudo e de todos é Amor. Por isso, também suas criaturas carregam como sua marca mais profunda a de serem “amores” do Amor e, por conseguinte, como tais, com a necessidade interior de amar ou servir como Ele ama e serve. Por isso, não pode ninguém, jamais, viver numa atitude de indiferença, alheio às demais criaturas tanto humanas como cósmicas.

Por isso, a Igreja, principalmente desde Leão XIII com a Rerum Novaram, passando pelo Vaticano II, até hoje, com o Papa Francisco, vem insistindo na recuperação da dimensão social, comunitária do mandamento do amor. Quando, porém, a Igreja faz isto não está apenas dizendo um “não” a um cristianismo autorreferencial, meramente privado e unicamente voltado para si, mas também que precisamos retomar o coração do Evangelho e de toda a tradição religiosa do Antigo e do Novo Testamento: que aprendamos a reconhecer e acolher com alegria e gratidão o Reino de Deus que está no meio de nós e que nos disponhamos a colaborar com sua justiça, sua paz e fraternidade em favor de todas as criaturas, nossas irmãs, principalmente os humanos e dentre esses os próximos mais próximos, os injustiçados, os migrantes e refugiados, os mais frágeis e empobrecidos como os órfãos, as viúvas, as crianças, os doentes e idosos abandonados, muitas vezes, à própria sorte.

Daí essa magnífica conclusão do Papa Francisco: Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos (EG 183).

E, para consolidar sua exortação o Papa faz questão de evocar dois significativos exemplos: Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela (idem).

Finalmente, leiamos essa admirável conclusão: Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os pastores, são chamados e preocupar-se com a construção de um mundo melhor” (EG 183).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm