28.06.2017

São Pedro e São Paulo

St. Peter's Basilica, Ponte Sant Angelo, Tiber river. Rome, Italy.

 

Introdução

A história da Igreja, como toda a história sagrada do Antigo Testamento nasce, se desenvolve e se consuma num grande ato de fé. Fé de Deus em nós, seu povo, e de nossa fé, cheia de percalços e infidelidades. Hoje, celebramos dois exemplares desta fé, dois“vires apostolici” (homens apostólicos) que “plantaram a Igreja, regando-a com seu sangue, beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus” (Ant. de Entrada). Pedro, o primeiro a proclamar que Cristo é “o Filho de Deus vivo” e Paulo, o primeiro a levar a “alegria do Evangelho” aos quatro cantos do mundo.

  • A diversidade na unidade e a unidade na diversidade

 

Uma das primeiras maravilhas do mistério da Igreja que celebramos hoje é sua unidade na diversidade ou sua diversidade na unidade. Pedro e Paulo eram diferentes, a começar pela formação e pelo chamado. Pedro, humilde pescador, foi chamado sem nenhuma formação religiosa. Paulo, discípulo do grande teólogo Gamaliel, pelo contrário, era profundamente religioso, defensor da lei e, por isso, perseguidor dos cristãos. Para tornar-se discípulo de Jesus teve de ser derrubado do cavalo de sua doutrina, o farisaísmo.

Mas, além das diferenças havia também conflitos de ordem religiosa Em Antioquia, por exemplo, Paulo teve de repreender o companheiro por causa de seu comportamento dúplice. Pedro, quando estava só com os pagãos, comia com eles, mas quando chegavam os cristãos judeus “se retraia e se afastava, com medo dos judaizantes”. Bela é então a repreensão de Paulo porque feita no rigor da “verdade do evangelho” e da “graça da fé”: “Se tu, sendo judeu , vives como pagão e não como judeu, porque obrigas os pagãos a adotar os costumes judaicos?” (cf. Gl 2, 11-21).

Há algo de misterioso, maravilhoso, desafiador e ao mesmo tempo dramático tanto no nascimento como no desenvolvimento da Igreja pelos séculos afora: manter a unidade da diversidade ou a diversidade da unidade. A única explicação é uma força maior que se chama o amor de Cristo. Cristo é, pois, a causa que une um Pedro a um Tiago, a um Paulo, etc. Esta força pode ser chamada de “cristidade”, isto é, “vigor de Cristo”, essência da Igreja, de todo cristão e de todo cristianismo. Nem sempre, porém na Igreja os cristãos conseguiram se manter fiéis a esta força, tão bem testemunhada por estes dois “homens apostólicos”, preferindo seguir o pretenso vigor de suas interpretações doutrinárias e pastorais, fazendo surgir o escândalo da separação – oposição e briga – das diversas igrejas cristãs. A história demonstra que os seguidores de Cristo – santos e pecadores – nem sempre conseguem estar à altura de sua essência, vocação e missão: a verdade do Evangelho vivida na caridade e na humildade.

Mais que nunca, hoje e sempre, faz-se necessário acolher a exortação de Paulo: “já não sois mais estrangeiros nem migrantes, mas concidadãos dos santos. Sois da família de Deus. Vós fostes integrados no edifício que tem como fundamento os apóstolos e os profetas e o próprio Jesus Cristo como pedra fundamental” (Ef 2, 19-20).

. Pedro e sua profissão de fé

 

O evangelho de hoje, se desenrola todo ele em torno do diálogo de Jesus com seus discípulos acerca da identidade Dele: “E vós quem dizeis que eu sou?” Pedro, então, tomando a dianteira respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

  • Entre os dois “segue-me” de Pedro

 

Nos evangelhos, toda a história de Pedro, como seguidor-missionário de Jesus Cristo, se dá entre dois: “segue-me”. Entre estes dois “segue-me”, no centro, está a confissão de fé em Cesareia de Filipe, assim comentada por D. Bonhoeffer:

Duas vezes o chamado foi dirigido a Pedro: “segue-me! ”. Esta foi a primeira e a última palavra de Jesus ao discípulo (Mc 1, 17; Jo 21,22). A inteira vida de Pedro é compreendida entre estes dois chamados. Na primeira vez, depois do apelo de Jesus, Pedro, no Lago de Genesaré, tinha abandonado as suas redes e o seu trabalho, e o tinha seguido confiando na sua palavra. Na última vez, o ressuscitado o encontra enquanto novamente exerce o seu antigo trabalho, ainda no Lago de Genesaré, e de novo diz: “segue-me! ”. Entre os dois chamados havia toda a vida do discípulo no seguimento de Cristo. No centro desta vida estava a confissão de fé em Jesus como o Cristo de Deus. Por três vezes, no início, no fim, e em Cesareia de Filipe, a Pedro é anunciada a mesma coisa, a saber, que Cristo é o seu Senhor e seu Deus. É a mesma e única graça de Cristo que chama: “segue-me! ”, e que se lhe revela na confissão de fé no Filho de Deus (…). Foi sempre a única graça de Cristo, que venceu o discípulo, induzindo-o a abandonar tudo por amor do seguimento, que operou nele a confissão de fé que para o mundo não podia parecer outra coisa que blasfêmia, que chamou o infiel Pedro à comunhão extrema do martírio, redimindo, assim, todo o seu pecado. Pela vida afora de Pedro, graça e seguimento são incindíveis. Ele tinha recebido a graça preciosa.

  • Os preparativos

 

O episódio da confissão de fé de Pedro se dá em Cesareia de Filipe. Jesus aproveita um momento de isolamento e distanciamento das pressões do povo e dos fariseus na Judeia e na Galileia para ter com os seus Apóstolos um diálogo livre, tanto franco quanto decisivo acerca da identidade e do destino Dele: a cruz.

Segundo os Padres da Igreja os discípulos precisavam se desprender das opiniões dos “homens” sobre Jesus. Por isso, a dupla pergunta que Jesus dirige aos seus Apóstolos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem? ” e: “Vós, porém, quem dizeis que eu sou? ”

Somente se desprendendo das opiniões dos “homens” é que os discípulos chegariam a um conhecimento propriamente dito, verdadeiro, de quem é Jesus, da sua identidade. Os “homens”, no caso, o povo, a opinião pública, gente sem malícia, parecia ter uma opinião oscilante e indeterminada. Jesus poderia ser um dos grandes profetas: João Batista, Elias, Jeremias, etc. A elite político-religiosa, maliciosa, porém, já tinha uma opinião formada de Jesus. Para ela, ele não passava de um agitador e de um blasfemo.

Entretanto, o que importa não é o que os outros, mas o que eles, os discípulos pensavam ser Jesus. Eles ainda não tinham alcançado um conhecimento certo, isto é, nítido e seguro, de Jesus. Tinham apenas um certo pressentimento de que Ele seria alguém muito especial, singular, único, mesmo entre os homens que foram os mais íntimos de Deus. Vale lembrar aqui o episódio no mar da Galileia, quando e onde Jesus caminhando sobre as águas salvou Pedro que começou a afundar porque começou a duvidar de Jesus (Mt 14, 31). Ao subirem no barco, o vento, antes violento, amainou. Assim, diante da evidência do extraordinário, que se anunciava no ser e agir de Jesus, “prostraram-se diante dele e lhe disseram: ‘Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus! ” (Mt 14, 33).

 Mas, esta evidência fora algo assim como um vislumbre que um raio deixa ver no momento de seu relampejar. Percebiam, repentinamente, que a relação entre Jesus e Deus, a quem ele chamava de Pai, era inigualável, toda própria, singular; algo que ultrapassava mesmo o sentido do relacionamento entre os profetas e Deus. Entretanto, a evidência que lhes saltava aos olhos ainda era vacilante e nebulosa.

  • O ser e a verdade de Cristo

 

Um conhecimento propriamente dito acerca do ser de Jesus, sua identidade nítida, certa, bem determinada, vem à luz e se dá a conhecer na confissão de fé de Pedro em Cesareia de Filipe: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16, 16). Jesus não é meramente um cristo, isto é, um ungido de Deus, um eleito como os reis, sacerdotes e profetas de outrora, que Deus escolhera para a regência, a santificação e a salvação do povo. Jesus é o Cristo. Enquanto tal, é o Único, o Incomparável.

Assim, agora, longe das confusões, Jesus deixa que a sua identidade venha à luz seguramente, pela confissão de fé de Pedro. A singularidade da identidade de Jesus se deixa assim conhecer: ele é “o filho do Deus vivo”. O Deus, a quem ele chama de Pai, é o “Deus vivo”. É o Deus divino. Não se trata de um ídolo, que não vive. Esta resposta de Pedro é o fundamento da fé da Igreja. Humildade sublime! Sublimidade humilde! – dizia São Francisco. Os que o confessam, observa São Jerônimo, não estão incluídos entre “os homens”, mas são “deuses”. Ele parafraseia a pergunta de Jesus assim: “vós, que sois deuses, quem dizeis que eu sou? ”. “Deuses”, certamente, não por natureza, mas por graça, isto é, seres deificados, deiformes, “filhos de Deus” no “filho do Deus vivo”. Com efeito, o próprio Pedro nos alerta, numa de suas cartas, que nossa dignidade de filhos no Filho consiste em sermos “comungantes da natureza divina”, isto é, deuses por graça (2 Pd 1, 4). Com efeito, comungar é tornar-se um com Aquele com quem comungamos.

2.4. Bem-aventurado

A confissão de fé mereceu a Simão Pedro uma bem-aventurança: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, pois não foram a carne e o sangue que te revelaram isto, mas o meu Pai que está nos céus” (Mt 16, 17). O conhecimento de Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo, era, pois, proveniente de uma revelação divina e não da investigação humana. Jesus foi revelado aos Apóstolos, por um desígnio do Pai, como o Cristo, o Filho do Deus vivo. A verdade da fé em Cristo é, pois, uma verdade gratuita, uma verdade revelada de graça, isto é, não com base em nossos méritos, desde a revelação gratuita doada pelo Pai no Espírito.

A partir do encontro com a graça da verdade de Cristo – verdadeiramente filho de Deus – Pedro não é mais o mesmo. Começa uma nova existência, um novo homem e uma nova caminhada, uma bela e boa aventura, uma nova experiência de ser homem. Desprendendo-se sempre mais de tudo e  de todos vai perdendo sua velha identidade para ganhar uma nova identidade, isto é, para tornar-se sempre mais uno e um com Cristo. Eis porque Jesus o chama de “bem-aventurado”, isto é, homem plenamente feliz, realizado.

  • De Simão filho de Jonas para Pedro: homem de pedra

 

Ao proclamar a bem-aventurança de Pedro, Jesus se dirige a ele chamando-o pelo seu nome original, israelita: “Shimon Bar Iona” (Simão filho de Jonas). “Simão” (Shimon) quer dizer aquele que escuta e é obediente. Neste nome está honrada a herança de Israel, o povo de que veio Simão e ao qual é dito: “Shemá Yisrael Adonai Elohêinu Adonai Echad – Escuta ó Israel, Adonai nosso Deus é Um” (Cfr. Dt 6, 4-9).  Ele é dito “filho de Jonas” (Bar Iona). São Jerônimo diz que o nome “Iona” (Jonas) significa “pomba” e vê nisso uma alusão ao Espírito Santo. No evangelho de João, porém, o nome original de Simão aparece como “Shimon bar Iohanan” (Simão filho de João). Ora, “João” quer dizer: “O Senhor Deus é gracioso”. Assim, os dois nomes significam, no fundo, o mesmo: o obediente filho que nasceu do Espírito Santo ou da Graça de Deus. Mas, o mais importante é que logo depois de proclamá-lo bem-aventurado, Jesus lhe dá um nome novo, na verdade, um cognome que se transformará em nome: “Tu és Pedro”. “Pétros” é a tradução grega do nome aramaico Kefá, que quer dizer “Rocha”.

No Novo Testamento, às vezes aparece simplesmente a transcrição grega da palavra aramaica: “Cefas” (Jo 1, 42; 1 Cor 1, 12; Gl 1, 18 etc.). Assim, “Simão, filho de Jonas” (ou de João), isto é, o ouvinte obediente que se submete à luz divina, torna-se Pedro, isto é, homem de pedra, firme como uma rocha, em virtude da confissão de fé que saiu de sua boca em Cesareia de Filipe. É sobre o fundamento desta confissão de fé – “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” – que se funda a Igreja.

Sempre é bom, importante e necessário notar que a Igreja não está fundada sobre Pedro, mas sobre a confissão de sua fé. Melhor dizendo: a Igreja está fundada sobre Jesus que aqui é o confessado desta confissão – confessado como o Cristo, o Filho do Deus vivo. Esta é a intepretação dos Padres da Igreja, como São João Crisóstomo, Santo Agostinho. Cristo é a rocha (cfr. 1 Cor 10, 4). Ele é a Pedra. Simão se tornou Pedro, isto é, “de Rocha” ou “da Rocha”, por graça desta Pedra, que é o seu Mestre: Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo. Parece que isso estava bem a peito de Simão. Por isso, mais adiante falará de Jesus como a “pedra angular” (At 4, 11) que os pedreiros rejeitaram.

Os medievais, seguindo a São Jerônimo, interpretavam, contudo, o nome “Petrus” como significando “quem contempla Deus”. Simão teria se tornado Pedro por ter recebido o conhecimento de Deus, ou melhor, de Jesus como o filho do Deus vivo. É este conhecimento que vem a lume pela sua confissão de fé. Trata-se de um conhecimento todo próprio, que não vem da carne e do sangue, isto é, como vimos, que não é segundo o homem, mas segundo Deus e que significa, na verdade, “conascimento”, como se verá mais adiante.

Mas, há ainda outra interpretação do nome “Pedro”. Céfas em grego é Kephas. Alguns antigos interpretaram este nome aproximando-o de Kephalé que em grego quer dizer “cabeça”, no sentido de intelecto.  

Aqui precisamos dar um passo para trás, para a Idade Média, em que a compreensão de “cabeça” ou intelecto ainda não é vítima do racionalismo e do intelectualismo unilateral e em que também a compreensão de coração ainda não é vítima do sentimentalismo e do irracionalismo também unilateral.

Cabeça significa o que há de mais elevado no humano: o que nele se volta para o alto, para Deus. Para os medievais o fato de o homem andar ereto, com a cabeça erguida e não voltada para baixo, como os animais, era um distintivo de sua dignidade. Os medievais fazem coincidir cabeça e coração: ambos falam do mesmo, mas de perspectivas diferentes. Cabeça é o summo meo (o mais elevado de mim), na linha da verticalidade. Coração é o interior meo (o mais dentro, mais íntimo de mim), na linha da interioridade. Depende de como se enfoca a viagem da individuação no caminho da contemplação de Deus: se como elevação (da mente para Deus) ou se como penetração interior, para o âmago de mim mesmo, em que vige a essência (fundo/fundamento/abismo) da minha alma.

É nesta dimensão do ser-humano que o homem conhece Deus, participa do ser Dele. Conhecer é, aqui, ser nascido de Deus, ser gerado por ele, como filho no Filho. Deus se revelou a Moisés com o nome “Aquele que é”. Jesus Cristo também diz, no evangelho de João: “Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis que Eu sou” (Jo 8, 28) ”. Não terá sido este saber que foi dado, previamente, a Pedro, naquele dia em Cesareia? O saber de que Jesus é o Filho do Deus vivo, de que ele, assim como o Pai, é “Aquele que é”? Tal foi a excelência do conhecimento que fora dado a Pedro e aos Apóstolos. São Mateus nos faz ver Jesus Cristo exultando de alegria por esta revelação gratuita dada aos “pequeninos”:

Naquela ocasião, Jesus tomou a palavra e disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos. Sim, Pai, foi assim que dispuseste na tua benevolência. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revela-lo (Mt 11, 25-17).

Quem mais tarde, no século 13, teve um conhecimento semelhante foi São Francisco. Por isso, é justamente este o evangelho que a Igreja proclama na Festa deste santo.

Conhecer Jesus como o Filho do Deus vivo, porém, quer dizer tornar-se filho com ele, nele, como ele. Esse conhecimento é comunhão, isto é, comungar do ser de Deus, d’Aquele que é (cf. 2 Pd 1, 4).

  • Igreja edifício de Cristo

 

Junto com a bem-aventurança e o nome novo de Pedro, vem também uma promessa: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Hades não terão força contra ela”.

Nasce assim a Igreja, a “ekklesía” (assembleia dos chamados), isto é, a comunidade dos discípulos que confessam a mesma fé confessada por Pedro naquela ocasião. Para dar a conhecer a natureza de sua Igreja Jesus usa a imagem do edifício ou da construção. Ora, todos sabemos que toda construção se inicia pelo seu fundamento, sem o qual não existe casa. Mas, também esta, para que possa subsistir, é necessário que se erga e permaneça assentada sobre seu fundamento. E assim, como o fundamento e a casa, também Cristo e a Igreja formam uma única realidade: um único e mesmo mistério. Onde estiver um estará o outro.

Por isso, também ela recebe a promessa de que as “portas do Hades”, isto é, a potência da morte[1], nunca poderá vencê-la. Como poderiam aqueles que professam e confessam o “Filho do Deus vivo” temer as “portas da morte”? Nenhuma potência aniquiladora, destrutiva, nenhum poder do anti-Reino pode alguma coisa contra o “Filho do Deus vivo” e aqueles que são com ele um só corpo. A união entre Cristo, o “Filho do Deus vivo”, e os seus discípulos, as “pedras vivas” é tão íntima e tão forte que nada, nem mesmo a potência da morte, que tudo separa, poderá desfazê-la.

  • As chaves do reino dos céus

 

O poder especial que é concedido a Pedro vem expresso com as metáforas das chaves que apontam para o poder sobre a casa e seus moradores e das funções de “ligar e desligar” que simbolizam o “proibido” e o “permitido”. São João Crisóstomo interpreta estas “chaves” como o conhecimento, que dá acesso ao mistério, e Rábano Mauro como o poder do discernimento. Assim, Jesus nomeia Pedro para “administrador” do seu “palácio”, com a autoridade de “ligar e desligar”, “atar e desatar”. Trata-se da autoridade de interpretar o Evangelho de Jesus – suas palavras e seus atos, ensinamentos e sua doutrina – a fim de torna-los acessíveis a todos os povos e nações de todos os tempos e culturas, a todos os homens, enfim, chamados por Deus a integrar a comunidade do Reino.

É graças ao conhecimento expressado na confissão de fé que provém da revelação do mistério de Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo, que Pedro assumiu o primado diante dos demais Apóstolos, e, com isso, a missão de ser pastor universal, guardião da unidade entre todos os que confessam a mesma fé. Esse é o múnus de Pedro que foi estendido ao bispo de Roma, o papa, o “servo dos servos de Deus”. A Pedro primeiro, e depois dele, aos demais Apóstolos. E, a partir deles, a toda a Igreja apostólica, é dado o poder maior, aquele poder que pertence, originariamente, a Deus: o poder de perdoar os pecados. A Igreja está, pois, no mundo, para ser sacramento da compaixão, da misericórdia de Deus, do amor visceral de Deus, manifestado em Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo.

. São Paulo

 

Para a celebração de São Paulo, a liturgia nos apresenta o “testamento” dele, em carta escrita a Timóteo e que é lida hoje como segunda leitura. O coração desta carta vem assim descrito:

Eu já estou a ser oferecido em sacrifício, e o momento da minha morte está iminente. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Daqui em diante, está-me reservada a coroa da justiça, que o Senhor, o justo Juiz, me dará no dia do juízo; e não só a mim, mas também a todos aqueles que tiverem esperado com amor a Sua manifestação (2 Tm 4, 6-8).

A vida de Paulo foi, desde o seu encontro com Cristo crucificado-ressuscitado na estrada de Damasco, uma resposta generosa ao chamado ao seguimento e à eleição apostólica e um compromisso total com a verdade do Evangelho. Por Cristo e pelo seu Evangelho da graça de Deus, Paulo lutou, sofreu, gastou e desgastou a sua vida, num dom total, para que a salvação de Deus chegasse a todos os povos da terra.

Agora, o fim iminente deve consumar a sua oferenda de si. Ele já foi oferecido em libação. A referência à oferta “em libação” faz referência aos sacrifícios em que se vertia o vinho sobre o altar, imediatamente antes de ser imolada a vítima sacrificial. Isto quer dizer: o tempo de sua partida chegou. Isto quer dizer: ao chegar a este ponto de sua caminhada no seguimento de Cristo, Paulo diz: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (2 Tm 4, 7).

Está ai, nestas palavras, o sentido do ser cristão e da vocação apostólica, que Paulo assumiu, bem como o sentido da vida cristã: a necessidade de um combate. É neste combate que se decide se o discípulo de Cristo se torna o que ele, por graça, já é, ou não. Neste combate, o cristão, como Paulo, muitas vezes, experimenta sua fraqueza. Mas, sempre de novo, escuta de Cristo que lhe basta a sua graça e sua força: “a potência se consuma na fraqueza” (2 Cor 12, 9). O decisivo, para Paulo, é o resistir, o manter-se firme, aguentando o padecer cristão-apostólico na ternura a fraqueza da vida. A mística de Paulo é uma mística da paixão com Cristo. É daí que lhe advém a perfeita alegria do Espírito Santo.

Paulo vive uma contínua paixão, seu viver é um padecer (paschein: passio). Paulo se compreendia a si mesmo como alguém que estava a caminho, apressadamente a caminho. Ele corria acossado por uma pressa escatológica. O seu, era um correr de um “apóstolo” (enviado). Sua viagem se fazia no envio de Cristo. Ele era alguém que estava incumbido de levar a Boa Nova a toda a terra e, assim, ajudar na implantação da Igreja de Cristo sobre o orbe terrestre – uma só Igreja em muitas comunidades, um só Corpo de Cristo em muitos membros. Paulo não é só um enviado que corre. Ele é também um lutador que combate o bom combate. Quer alcançar a vitória definitiva. Quer consumar o seu curso, o seu percurso, a sua carreira.

Conclusão

A solenidade de hoje nos enseja também a celebração do “Dia do Papa”, o grande pai, o pai comum, o pai de todos os homens, representado hoje, na pessoa do Papa Francisco.

Nem sempre na história, a figura do papa foi bem compreendida e bem vivida. Quem nos dá um belo exemplo neste sentido é São Francisco. Já nos primórdios de sua conversão vai a Roma em peregrinação a fim de junto ao sepulcro dos Apóstolos Pedro e Paulo encontrar inspiração e força para viver a graça da pobreza que começava a encantá-lo. Foi lá, junto a estes ícones da Pobreza de Cristo, que ele trocou sua roupa vistosa pela roupa maltrapilha dos pobres e mendigos de rua para “fazer-se um deles, comendo avidamente com eles suas comidas” (2C 8).

Mas o gesto mais significativo de São Francisco foi sua viagem à Roma a fim de obter do Papa a provação de sua Vida evangélica, de sua Regra e de sua Ordem. Como o Papa considerasse aquela Vida por demais bárbara, em vez de atendê-lo, enviou-o a cuidar de porcos. Francisco, ouvindo isso, foi, fez o que o papa pedira e no dia seguinte voltou dizendo: “Senhor, fiz como mandaste: ouve, agora, eu suplico, meu pedido”. O papa admirado, vendo o que este homem fizera acolheu o pedido dele, confirmou-lhe o ofício da pregação e a própria Ordem (Cf. Breve Biografia de São Francisco, de Rogério Wendover).

Admira, pois que Francisco, diferentemente de outros fundadores de Ordens que o antecederam, é o primeiro a ir a Roma para prometer diretamente obediência, isto é, fazer sua consagração religiosa, nas mãos do papa. Tudo isso acontecia porque Francisco, iluminado pelo Evangelho, em sua simplicidade humilde e humildade simples via no papa o próprio Jesus Cristo que, humilde e obedientemente, se entrega nas mãos de seu Vigário como outrora se entregara ao seio da Virgem Maria, aos seus algozes na cruz e a todos nós no pão eucarístico.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm