08.08.2019

DIÁLOGO: ATRIBUTO DE DEUS, VIRTUDE DE CADA SER HUMANO

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Queridas Irmãs,

O Senhor lhes dê a sua Paz!

A cada ano a celebração litúrgica da nossa irmã e mãe Clara de Assis nos dá a oportunidade de continuar o diálogo entre nós, aumentando e aprofundando os conteúdos. Esta carta que lhes escrevo quer ser um momento deste diálogo fraterno no qual as reconheço como interlocutoras ativas, sabendo o quanto são preciosos para mim e para todas vocês, queridas irmãs, as reflexões, as propostas e contrapropostas da parte de vocês; tudo isso nos ajuda a centrar-nos e colocar de novo como prioridade o essencial do chamado de Deus na Igreja.

Dedico este espaço de comunicação com vocês ao diálogo, pois este ano nossa Ordem faz memória do encontro entre São Francisco e Al-Malik Al-Kamil. Em todos os lugares do mundo em que surgem iniciativas para promover o diálogo entre os crentes em Deus e em particular com os Muçulmanos. Lá onde o outro encontra um lugar em mim, com respeito acolhedor, o Reino de Deus se manifesta.

Tu és diálogo: O diálogo tem a ver com a modalidade de existir de Deus, pois Deus é comunhão. No símbolo de nossa fé, nós professamos: eu creio em Deus Pai. Deus é Pai; então existe um Filho, e existe uma relação entre eles, uma relação absoluta e totalizante que é esta mesma Pessoa: creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida.

Na carta endereçada à Família Franciscana e aos irmãos muçulmanos no início deste ano de 2019, deixei ecoar dois dos Louvores ao Deus altíssimo que Francisco compôs em La Verna depois de ter recebido os estigmas: Tu és humildade, Tu és paciência. Gostaria de acrescentar: Tu és diálogo. Sim, pois desde o eterno princípio as três Pessoas divinas são vida que se comunica ao Outro-de-Si, vida que gera e acolhe vida. Este modo de existir, que fecunda e torna fecundos, o chamamos amor, pois quem ama procura o outro e se doa a ele para que possa viver em plenitude.

No seu mistério de amor, de vida, de comunhão, Deus quis envolver também a nós, escolhendo-nos como filhos adotivos para que fôssemos louvor de Sua glória (cf. Ef 1,3-14). Que grande graça! Como o Filho dirige-se ao Pai desde o princípio, assim o Pai, por meio do Filho, dirige a Palavra à toda a criação (cf. Jo 1,1-3): “Ele disse e foram criadas” (Sl 148,5). No diálogo entre Deus e o homem, a iniciativa é sempre de Deus. A palavra divina é uma palavra que vem ao nosso encontro (cf. Jr 15,16).

Pela imagem que recebeu e pela semelhança à qual é chamado a cooperar com Deus para a realização (cf. Am 5,1), o ser humano criado homem e mulher é também na posição de relacionar-se com o outro: um Outro que é o próprio Criador, um outro que é respectivamente a mulher e o homem (cf. Gn 1,27). A narração de Gn 2 exprime bem esta verdade: o homem reconhece o sentido da própria existência somente quando comunica-se com o “tu” que lhe é semelhante, está à sua frente, o constitui na plenitude da imagem de Deus. O homem e a mulher, então, são pessoas-em-diálogo, e não unidades isoladas, fechadas em si mesmas.

A Palavra se fez carne: Sabemos bem – quem não fez e não faz a experiência? – que o pecado situa-se bem aqui: em interromper o fluxo da comunicação vital e enclausurar cada um em um mundo falso e asfixiado. O autor bíblico narra com eficácia esta realidade referindo às relações de Adão e de Eva depois do ato de desobediência: não mais um diálogo fecundo, mas acusas mortais recíprocas. A comunhão entre as pessoas humanas, imagem daquela entre as Pessoas divinas, envolve-se na convivência entre potenciais inimigos!

Na plenitude dos tempos, a Palavra mesma de Deus se fez carne no mundo ferido e dividido (cf. Jo 1,14) e permanece como amor que nunca cessa de doar-se no sacramento do seu Corpo. Desta Palavra nós nos nutrimos para aprender de novo a falar a linguagem de Deus que é a comunhão. Somos um povo mundial hoje, que está fazendo a trágica experiência do conflito e do isolamento, dos contatos multiplicados e das dificuldades de comunicar verdadeiramente. Podemos dizer que conhecemos de fato o alfabeto do diálogo autêntico?

Este é um tempo propício para dar consistência à nossa vocação “dialogal”, a mesma do autor da primeira carta de João: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida – porque a Vida manifestou-se: nós a vimos e lhes damos testemunho e vos anunciamos a Vida eterna, que estava voltada para o Pai e que nos apareceu – o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais também em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo.” (1Jo 1,1-3). Gostaria de concentrar-me sobre algum conteúdo deste texto.

Comunhão com o Verbo da vida – O primeiro movimento para dialogar é acolher o dom, pois não vou ao encontro do outro levando a mim mesmo, mas aquilo que por minha vez eu recebi (cf. 1Cor 11,23); aquele olhar que abriu-me o horizonte da verdadeira vida, aquela palavra que orientou o meu caminho (cf. Sl 118,105). Francisco conquistou Clara 

para aquele Senhor que ele fora conquistado antes. Clara exorta as irmãs para amar “no amor de Cristo” por quem reconhecem que são amadas.

A qualidade e a capacidade de dialogar então devem ser buscadas na verdade da relação com o Senhor. Clara compõe uma cena muito forte: “E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer de morte mais vergonhosa. Assim, posto no lenho na cruz, o próprio espelho advertia quem passava para o que deviam considerar: ó vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede se há outra dor igual à minha. Respondamos a uma voz, num só espírito, ao que clama e grita: Vou me lembrar para sempre e minha alma vai desfalecer em mim” (IV Carta 23-26).

Fundamentado sobre a rocha da relação viva com o Senhor Jesus contemplado no momento do dom total de si, o diálogo pode resistir ao sopro dos ventos da incompreensão, da desilusão e também da sensação de que “não vale a pena” pois manter-se aberto ao diálogo poder ser sacrificante.

Chama-me a atenção o fato de Clara, mesmo escrevendo a Inês em primeira pessoa, responder ao chamado do Crucificado com a forma plural “respondemos”, e exortar a fazê-lo “com uma só voz, com um só espírito”. Gosto de colher nisto o caráter comunitário e de comunhão da vida de Irmãs Pobres de vocês, o dinamismo pascoal do cotidiano no qual as diversidades se harmonizam e vocês podem chegar à sintonia do sentir, do querer e do agir.

A convergência do olhar sobre o Crucificado, do qual contemplam o amor que chega a vocês pessoalmente, deixa o ouvido interior atento ao som da voz daquele que chama; e vocês se veem chamadas juntas para crescer na compaixão. Nisto reconheço um fruto do Espírito, expressão madura do diálogo com o Senhor e entre vocês, buscado com fidelidade através e muito além de qualquer tentação e tentativa de fechamento à outra ou de invasão da outra. O diálogo é encontro dos rostos.

 “Nós o anunciamos a vós para que estejais também em comunhão conosco”

Quem dialoga busca o outro para participar juntos da beleza e da riqueza da vida, quer reduzir as distâncias para celebrar o encontro sempre transformador. Quando se faz diálogo não permanece como é: áreas interiores que ficavam às sombras até aquele momento, ignoradas por nós mesmos, vêm à luz. Quem dialoga cresce no conhecimento de si mesmo antes de conhecer o outro, acolhe a própria unicidade e a oferece sem alguma pretensão. Nada é mais contrário ao diálogo do que o espírito de prepotência ou de revanche. Nada de mais propício à pequenez que não causa medo, da simplicidade que não engana, da pureza que liberta da suspeita de ambiguidade e de subterfúgios. O diálogo não instrumentaliza o outro.

Clara e as irmãs que na existência cotidiana atravessam os gargalos da discórdia e da divisão, da inveja e da murmuração, com o perdão, a reconciliação e a intercessão abrem os espaços da acolhida e da comunhão (cf. Regra de Santa Clara X,6; IX,7-11). As cartas escritas a Inês de Praga são testemunhos de quanto Clara fosse disponível e pronta para entrar em diálogo com o outro, quanto ela era convicta que na partilha fraterna pode-se compreender melhor o que agrada a Deus e fazer-lhe adesão. Clara escuta as questões de Inês e as responde (cf. III Carta 29-41); convida a irmã de longe a buscar por sua vez o diálogo com quem pode iluminá-la de acordo com a verdade da vocação recebida (cf. II Carta 15-18), a fim de percorrer com segurança o caminho dos mandamentos do Senhor (cf. II Carta 15).

Clara sabe traduzir o seu “habitar” na comunhão trinitária também no diálogo dos gestos: fazer dar um ovo à irmã tentada de sufocar-se, beijar o pé que a atingiu na face, cobrir as irmãs que dormiam no frio durante a noite, traçar o sinal da cruz sobre seus corpos adormentados… O caminho do diálogo conduz a abraçar o outro.

No diálogo, a nossa história No início da história carismática de nossa Família Franciscana existem dois diálogos memoráveis: aquele entre o Senhor e Francisco na noite de Espoleto, prolongado depois na gruta perto de Assis (cf. 1ª Celano 6), e aquele entre o Crucifixo e Francisco na Igreja de São Damião (cf. 2ª Celano 10). Uma das viradas determinantes nesta história foi impressa sem dúvida pelos vários diálogos entre Francisco e a jovem Clara (Legenda de S. Clara 3).

Como não pensar, pois, que todos nós nascemos na Porciúncula, em Santa Maria dos Anjos, cuja festa nos faz ouvir de novo o diálogo entre o anjo e Maria, aquele diálogo que marcou o tempo no qual o Senhor “empenhou-se em salvar-nos” (Cf. Compilação de Assis 14). Tudo me leva a renovar junto com os frades o desejo e o empenho para ser com a nossa vida “lugares” de encontro com a Palavra de Deus e com as palavras dos seres humanos. E peço a vocês, minhas senhoras, que continuem a ser mulheres de diálogo, em nome do Senhor.

(Frei Michael Anthony Perry, ofm – Ministro Geral e Servo)

Roma, 25 de julho de 2019 –  Festa de S. Tiago