17.11.2017

A Parábola dos talentos

Timisoara, Romania - June 1, 2016: Girl who paints a ceramic bowl. Workshop organized by the City Hall Timisoara with the occasion of the International children Day.

Introdução

Hoje, penúltimo domingo do ano litúrgico, somos postos em face ao mistério do sentido último de nossa vida. Por isso, pela parábola dos talentos, somos interrogados acerca de como estamos administrando os bens, os talentos que Deus nos deu a fim de que, ao chegar aquele dia, possamos apresentar a Ele os frutos multiplicados desta administração.

1.A mulher forte e temente a Deus

Quem nos introduz neste mistério, hoje, é o livro dos Provérbios[1]. Num pequeno trecho, proclamado na primeira leitura, nos é apresentado o exemplo da mulher forte, temente a Deus e que administra com habilidade e cuidado os afazeres da casa; uma mulher que, com sua solicitude nas coisas da casa, nas preocupações com o bem-estar da família, se torna o chão firme do marido e dos filhos; uma mulher que, atenta e solicita às necessidades  dos pobres, dos mais fracos, dos desprezados e abandonados, se torna um esteio também para toda a comunidade, para todo o seu povo.

Uma mulher assim torna-se, também, mãe e mestra para todos na busca do “homem humano”, isto é, mãe e mestra no empenho de deixar aparecer na terra dos homens a imagem do Deus humanado, encarnado, que é amor, misericórdia, benignidade.

Mestre Eckhart (Sermão 2), celebra este modo de ser na figura de Marta. Mas poderíamos também evocar este modo de ser na figura de Maria… Sim, Deus precisa de uma alma, de um seio virginal-esponsal-maternal como Maria, mas também de mãos laboriosas como Marta a fim de ser fecundo e frutuoso no coração e na vida do homem. Ouçamos:

Agora prestai atenção e observai com precisão! Se o homem permanecesse para sempre moça-virgem, dele não viria nenhum fruto. Para tornar-se fecundo, é necessário que seja mulher. “Mulher” é o nome, o mais nobre que se pode atribuir à alma, e é muito mais nobre do que “moça-virgem”. Que o homem conceba Deus em si é bom, e nessa concepção é ele moça-virgem. Mas que Deus se torne nele fecundo, isso é bem melhor. Pois frutificar a dádiva é a única gratidão para com a dádiva. E ali, o espírito é mulher, na gratidão que gera novamente, lá onde o espírito gera novamente a Jesus para dentro do coração paterno de Deus[2].

Esta felicidade, simples e humilde, terra a terra, do dia-a-dia, de um homem que tem o dom de uma tal mulher, o salmista faz ecoar em nossos corações através do salmo de hoje: “A tua esposa é uma videira bem fecunda no coração da tua casa” (Sl 127).

2.O patrão e os administradores dos seus talentos

A perícope do Evangelho de hoje está no contexto do discurso escatológico de Mateus (Mt 24-25). Isto quer dizer que ela nos leva a interrogar se, na lida das coisas do nosso cotidiano, realmente estamos nos ocupando com o definitivo, o último, o imperecível; se realmente estamos buscando o tesouro que “as traças e a ferrugem não corroem e os ladrões não assaltam nem roubam” (Mt 6,19) ou, se apenas vivemos correndo atrás de futilidades e do vazio das coisas passageiras. Enfim, nos questiona se estamos sendo servos bons e fiéis ou maus e preguiçosos das graças e dons divinos. Ouçamos então, a parábola.

2.1.O tempo da administração e da multiplicação dos talentos

A parábola começa: “Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens”.

Este homem, evidentemente, é Nosso Senhor Jesus Cristo, que, após ter concluído sua missão e antes de partir para o Pai, convocou seus Apóstolos e discípulos para entregar-lhes a alegria do Evangelho, a esperança e a fé da Boa Nova da salvação universal que deveriam ser multiplicadas, isto é, compartilhadas, condivididas com os homens por toda a face da terra até o fim dos tempos. Para isso “a um entregou cinco talentos, a outro, dois, a outro um só, a cada um de acordo com suas capacidades; depois partiu”.

Primeiramente anotemos a benignidade deste patrão. Ele confia a administração de seus bens de modo discreto e atento à realidade de cada servo, segundo a medida da sua capacidade de receber e de suas forças para poder fazer frutificar, multiplicar o bem que lhe foi confiado. Por isso, a um deu cinco, a outro dois e a outro um. É como bem diz o dito popular: Deus nunca dá sua graça ou sua cruz para além das nossas forças.

Além do mais, deve-se notar a confiança depositada deste patrão, pois, em vez de permanecer ao lado dos empregados ou de voltar de vez em quando a fim de controla-los ou fiscalizá-los, “partiu” e só voltou para hora da colheita, da prestação de contas. Além do mais, o fato de Jesus ter partido e de só voltar no fim dos tempos, revela que este Reino será e deverá ser aquilo que os seus servos – os homens –  fizerem dele. Ou seja, teremos o Reino de Deus que nós nos merecemos.

Mas, se este senhor trata seus servos com tanto cuidado, o mesmo não acontece com todos eles. Enquanto os dois primeiros trataram de logo fazer render seus talentos e ganhar outros tantos, aquele que só recebeu um foi cavar um buraco a fim de esconder nele o dinheiro do seu senhor. Mas, o que seriam, então, estes talentos ou como classificar estes servos?

Para os padres da Igreja, o que recebeu os cinco talentos são aqueles que, através dos cinco sentidos corporais, recebidos graciosamente do seu criador, souberam conhecê-Lo, pelas criaturas. E assim, foram capazes, também, de passar à contemplação, aos sentidos espirituais, isto é, à audição e à visão do espírito, da mente, ao olfato das fragrâncias dos perfumes divinos, ao tato do abraço divino e ao gosto da sapiência divina.

Também, poderia se pensar em todo aquele que recebeu a Torah, com seus cinco livros da instrução divina, e que foi capaz de passar dela para o Evangelho, que, aliás, Mateus organiza em 5 discursos. Poderiam ser, aqueles que, a exemplo de Maria, Francisco e Clara, receberam a Palavra de Deus e que foram capazes de multiplicar a sua interpretação; que se empenharam em vivê-la ricamente em toda a sua vida tornando-se, assim, um ensinamento vivo para os outros de como conhecê-la, amá-la e segui-la.

O que recebeu dois talentos seriam aqueles que receberam os dois maiores mandamentos e os cumpriram na sua vida: o amor de Deus e o amor do próximo. São os que têm a confissão de fé e o testemunho das boas obras da caridade, bem como aqueles que conseguem alcançar uma compreensão não só literal, mas também espiritual da Palavra de Deus. Aquele, enfim, que administra bem as coisas exteriores como as obras, as instituições e as interiores como as virtudes, os carismas.

Enfim, aquele que recebeu um só talento e o escondeu na terra é aquele que emprega o seu gênio e o seu engenho única e exclusivamente no cuidado não apenas das coisas terrenas, mas também no cultivo de um coração comodista e mesquinho voltado unicamente para seus próprios interesses (Cf. LS 2). Neste caso, diz frei Egídio, ele se torna “um homem ocioso que perde este mundo e o outro, não frutificando nem para si e nem para os outros” (DE 7).

2.2.O tempo da prestação de contas

Terminado o tempo da longanimidade, da paciência e da dádiva de fazer lucros e frutos para Deus, o Senhor retorna para ajustar contas com os seus servos.

Apresentam-se, então e sucessivamente, os que receberam cinco e dois talentos e lhe devolvem, cada qual, o dobro. Estes servos são congratulados pelo seu Senhor: “Está bem, servo bom e fiel, foste fiel em pouca coisa, constituir-te-ei sobre muito; entra na alegria do teu Senhor”. Cristo convida para a felicidade eterna aquele que correspondeu à sua incumbência de administrar os dons divinos com fidelidade, tornando-se útil aos demais homens. Cristo chama àquele discípulo de “servo bom e fiel”. São João Crisóstomo diz: “servo bom, porque se refere à caridade para com o próximo; e fiel, porque não se apropriou de nada do que a seu Senhor pertencia”.

Dele se diz, também, que foi fiel no pouco. Segundo São Jerônimo este “fiel no pouco” é porque tudo o que temos no presente, ainda que pareça grande e abundante, sem dúvida, é pouca coisa, em comparação com os bens futuros. Em virtude desta bondade (ser útil aos outros) e desta fidelidade (ser desprendido) ele recebe o prêmio da felicidade eterna. Que maior prêmio, diz ele, se pode dar ao servo do que estar e desfrutar no gozo do seu Senhor? Assim, a ambos os servos que duplicaram os bens que lhes tinham sido confiados, o Senhor felicita e premia convidando-os a entrar na sua alegria. Ambos recebem igual prêmio, não pela consideração do lucro, mas pela solicitude de sua boa-vontade. O prêmio é fruir de Deus, sentar à sua mesa, gozar da intimidade, do amor de Deus na Trindade, a cuja imagem fomos feitos (Santo Agostinho).

Apresenta-se, então, o terceiro que recebeu um só talento, classificado de “mau e preguiçoso”. Mas, por que “mau” se ele procurou guardar o talento e, agora, o está devolvendo integralmente? É mau porque não seguiu a nova lei dos enviados de Deus que ordena que devemos dar de graça tudo o que de graça recebemos (Cf. Mt 10,8). Além do mais, em vez de confessar a sua inércia e de rogar misericórdia pela sua preguiça coloca a responsabilidade de sua negligência na própria conduta de seu Senhor. Alega ter agido com prudência, quando na verdade omitiu-se com negligência e de ter agido assim por temor de seu Senhor, quando na verdade foi apenas negligente e preguiçoso. Por isso, a desculpa é sua própria condenação: “Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu colho onde não semeei e ajunto onde não espalhei. Por isso devias ter confiado o meu dinheiro aos banqueiros e assim à minha volta, eu teria recuperado com juros o que é meu”. É mau, este servo, também, porque, tirando de si a própria responsabilidade e pondo-a no modo de ser do seu Senhor, no fundo, está caluniando a seu Senhor. E é preguiçoso  porque não quis duplicar o talento recebido. Assim, ele condena a si mesmo duplamente: pela sua preguiça e negligência e pela sua soberba.

Vem então a sentença do Senhor: “Tirai-lhe, pois, o seu talento e dai-o àquele que tem os dez talentos. Pois a todo o homem que tem será dado, e estará na superabundância; mas àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado. Quanto a este servo imprestável, lançai-o nas trevas exteriores: lá haverá choro e ranger de dentes”. À primeira vista parece injusta tal decisão.

Segundo São Gregório Magno, quem é movido pela caridade, isto é, quem é gracioso e solícito, é como terra afofada e limpa: tudo o que nela cair é bem recebido e bem frutifica. Já quem é soberbo, endurecido e preguiçoso, aos poucos vai perdendo até mesmo o que já recebeu. Quem negligencia o cultivo da graça do encontro, seja no casamento, na vida familiar ou eclesial, seja na vida religiosa ou sacerdotal, aos poucos será tomado pela acídia e pelas trevas interiores e ver-se-á jogado nas “trevas exteriores”, isto é, fora da comunhão divina. O mesmo São Gregório conclui: “O que tem, pois, talento, procure não ser cão mudo; o que tem abundância de bens, não descuide da caridade; o que tem experiência de mundo, dirija o seu próximo; o que é eloquente, interceda pelos pobres junto ao rico; porque a cada um lhe contará como talento o que fizer, ainda que ao menor”.

  • Vigilantes, sóbrios, fiéis e arriscados

Quem compreendeu e viveu intensamente a parábola de hoje foi São Paulo. Depois de escrever aos tessalonicenses que o “dia do Senhor virá como um ladrão, de noite” e do qual ninguém poderá escapar, exorta: “Portanto, não durmamos, como os outros, mas sejamos vigilantes e sóbrios”. Quem vive vigilante, sóbrio, fiel e solícito para com os tesouros que o Senhor lhe confiou está sempre preparado para a repentinidade da visita ou vinda do seu Senhor, seja nos acontecimentos da vida seja no dia da morte. O negligente, ao contrário, não. Será sempre surpreendido na indolência. Por isso, recomendava frei Egídio: “Muito solícito deveria ser o homem para guardar a graça dada a ele por Deus e em trabalhar fielmente com ela, porque muitas vezes o homem perde o fruto pela folha e o grão pela palha”. E acrescentava: “Assim como as boas obras são caminho para todo o bem, assim as más são via para todo o mal” (DE 7).

O cristão não vive confiante na “paz e segurança” daqueles que se apegam ao mundo. Ele prefere o bom combate da fé, a inquietude salutar da busca de Deus e o risco de investir as dádivas divinas em seu empenho na terra dos homens em favor do Reino de Deus. Por isso, os discípulos, os servos “bons e fiéis” sempre se põem sob a exigência de serem vigilantes e sóbrios. Não especulam sobre o quando da vinda de Cristo. Apenas se preocupam com e como eles vão se encontrar com o divino Mestre em sua vinda.

Conclusão

Meditando a Palavra de Deus da primeira leitura, cremos que não falhamos em dizer que Maria e a Igreja são aquela mulher forte que Deus encontrou para confiar-lhes o tesouro de seu próprio Filho com sua mensagem evangélica. Por isso, e para isso, a exemplo do seu mestre e Senhor, também elas tiveram que pôr em risco toda a sua vida, acompanhando-o até a morte e morte de cruz. Também elas souberam sair de sua zona de conforto para se abrirem ao chamado e ao dinamismo da partilha missionária da alegria da Boa Nova.

Mas, além delas, nós, hoje, atendendo ao apelo do Papa, não podemos deixar de mencionar, como exemplo de “servo bom e fiel”, São Francisco. Dele assim se expressa um de seus hagiógrafos: “Desde que este homem, desprezando as coisas que passam, começou a aderir ao Senhor, não se permitiu desperdiçar nem mesmo a menor fração de tempo. De fato, apesar de já ter acumulado abundantes méritos nos tesouros do Senhor, sempre novo, apresentava-se cada vez mais pronto para os exercícios espirituais. Julgava uma ofensa grave deixar de fazer alguma coisa boa, e que não progredir continuamente era retroceder” (2C 159). Por isso, também fez questão de escrever em seu Testamento esta exortação: “Quero que todos os meus frades trabalhem e se exercitem, e os que não sabem artes que aprendam alguma” (T).

Por tudo isso, nosso Papa Francisco nos exorta:

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos… Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer»” (Mc 6, 37).

Não deixemos que nos roubem a alegria de podermos fazer frutificar os talentos que o Senhor nos concedeu!

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] O “Livro dos Provérbios” apresenta várias coleções de ditos, de sentenças, de máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza o resultado da reflexão e da experiência (“sabedoria”) de várias gerações de “sábios” antigos (israelitas e alguns não israelitas). O texto que nos é hoje proposto aparece no final do Livro dos Provérbios. Apresenta-se literariamente como um “poema alfabético” (poema em que a primeira letra de cada verso segue a ordem das letras do alfabeto: a primeira palavra do primeiro verso começa com a letra “alef”, a primeira palavra do segundo verso começa com a letra “bet” e assim sucessivamente).

[2] Idem, ibidem.