07.03.2019

O tempo favorável que se chama Quaresma

A man worshiping God at a spectacular sunset after a storm
A man worshiping God at a spectacular sunset after a storm (Istock).

 

“Do mais profundo de mim mesmo, clamo a ti, Senhor. Não podes permitir que me afogue no abismo. Tu és o Deus do perdão, da graça e da ternura. Não te cansas de chamar o homem para um diálogo face a face com teu amor. Do mais profundo de mim mesmo, clamo a ti, Senhor. Não suporto mais viver na superfície das coisas e na mediocridade de existir. Do mais profundo de mim mesmo clamo por ti, Senhor. Dá a luz que clareie meu caminhar e o caminho da Igreja. Que minhas entranhas se renovem. Que me seja dada a graça da coragem e do ânimo porque tu és o Deus da vida e o Senhor da força.”

 “No momento favorável eu te ouvi, e no dia da salvação eu te socorri. É agora o tempo favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 6,2).  Em cada geração o Senhor concedeu o tempo favorável da penitência a todos que a ele quiseram converter-se.  Noé proclamou a penitência, e todos os que os escutaram foram salvos.  Jonas anunciou a ruína dos ninivitas, mas eles, fazendo penitência de seus pecados, reconciliaram-se com Deus por suas súplicas e alcançaram a salvação, apesar de não pertencerem ao povo de Deus” (Clemente I, papa). Estamos no tempo favorável.  Como dizia Francisco de Assis: “Até agora nada fizemos. Vamos começar tudo de novo”.

O tempo passa rápido. Nas brumas do passado as coisas vão se misturando. O que ocorreu de significativo em nossa história pessoal nos últimos dez anos?  Quem bateu à nossa porta? O que a vida foi pedindo de nós?  Que êxodo fizemos? Como estamos atravessando o tempo da existência?  Que apelos nos vem do deserto?  O que significa para nós a passagem de Jesus, sua travessia, sua páscoa?   Enzo Bianchi afirma que o tempo da quaresma é tempo de busca da verdade de nosso ser.  “A cada ano retorna a quaresma, um tempo pleno de quarenta dias que os cristãos devem viver todos juntos como um tempo de conversão e de retorno a Deus (…). A conversão, não é um acontecimento realizado de uma vez por todas. É um dinamismo que deve ser renovado nos diversos momentos da existência, nas diferentes idades, e sobretudo quando o tempo que passa leva o cristão a se adaptar ao mundanismo, a ser vencido pela fadiga, a perder o sentido e o objetivo de sua vocação e a viver a fé numa espécie de esquizofrenia.

Sim, a quaresma é um tempo para reencontrar a própria verdade e a própria autenticidade, antes mesmo de ser um tempo de penitência. É um tempo para redescobrir a verdade do próprio ser.  Jesus afirma que mesmo os hipócritas praticam a caridade (Mt 6, 1-6; 16-18). Por esse motivo, precisamente trata-se de unificar a própria vida diante de Deus e ordenar o fim e os meios da vida cristã, sem confundi-los” (E. Biachi, Dar sentido ao tempo, Loyola, p. 34).  Portanto, trata-se de reorganizar-se.

“Na escola de nosso Redentor aprendemos que o homem não vive apenas de pão, mas de tudo o que sai da boca de Deus. Convém que, nesses dias da quaresma, o Povo de Deus deseje mais se nutrir da Palavra de Deus, do que do alimento material” (São Leão Magno). Lançados na aventura da vida, somos envolvidos por todas as preocupações cotidianas, com este cortejo de pequenas coisas, ou de eventos significativos.  No coração de tudo aquilo que vai se passando encontramos a Palavra. Não apenas um fonema mas o grito de Alguém que quer chegar ao mais íntimo de nós mesmos e arrancar uma resposta que possa nos levar à plenitude e nos transformar em seres luminosos no meio das trevas deste mundo caótico. O Senhor passa e fala. “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz e não endureçais o vosso coração”.

A Quaresma é tempo de ascese. Paul Evdokimov, conhecido autor ortodoxo, nos esclarece a respeito do dinamismo da ascese cristã.  “A ascese cristã nunca foi fim em si mesma; é apenas um meio, um método a serviço da vida, e como tal procurará adaptar-se às novas necessidades.  Outrora, a ascese dos Padres do Deserto impunha jejuns e privações intensas e extenuantes;   hoje a luta é outra.   A ascese consistirá sobretudo no repouso imposto a si mesmo, na disciplina da tranquilidade e do silêncio, onde o homem possa concentrar-se na oração e na contemplação, mesmo em meio as ruídos do mundo, do metrô, entre a multidão, nos cruzamentos de uma cidade. Consistirá sobretudo na capacidade de compreender a presença dos outros, dos amigos, em cada encontro. O jejum, ao contrário da maceração imposta será a renúncia alegre do supérfluo, a sua repartição com os pobres, um equilíbrio espontâneo tranquilo” (Paul Evdokimow).

Quaresma, tempo em que nos alimentamos da Palavra.  Nutrir-se da Palavra de Deus significa confrontar nosso projeto de vida com o projeto de Alguém que está para além das coisas pequenas que nos dão a ilusão de sermos importantes, projeto de Alguém que deseja que nos lancemos com coragem e confiança na direção de um amanhã que poderá ser radioso se tomarmos a decisão do seguimento. Nutrir-se da Palavra significa escutar atentamente a palavra na Liturgia de todos os dia, saborear os salmos, e à luz dessa mesma Palavra questionar todas as propostas que nos são feitas e as mirabolantes soluções para nossos problemas. O homem que tem sede de plenitude pergunta-se, incontáveis vezes, por aquilo que é o desejo do Senhor a seu respeito.  Vive no horizonte da fé.  Faz tal indagação no tempo da juventude, quando seus dias chegam à maturidade, nas horas de ventura e de desventura, e no entardecer da vida.  A Palavra de Deus incide sobre nossa história e nos “engravida” de Deus.  Fala-se hoje, com razão, da necessidade da Leitura orante da Bíblia em comunidade.

A Quaresma é o tempo do teste para nossa fidelidade na resposta ao plano de Deus; pode acontecer que o tenhamos traído, mutilado ou enterrado, e isso por covardia, interesse, hipocrisia, fraqueza, porque não soubemos vencer as tentações   que hoje se nos oferecem. Toda civilização inclui elementos bons e elementos nocivos, expressão de sua ambiguidade, de sua incapacidade de salvar-nos.  Hoje esses elementos nocivos são a apatia diante das realidades espirituais, seu sufocamento “mórbido” para que não constituam mais problema e seja relegados para os recantos da consciência e da vida; a total absorção no terrestre, nos valores  e bens que nos são oferecidos em quantidade cada vez mais crescente e alienante; o  “eficientismo”, gerado pelo ídolo do produzir-consumir e consumir-produzir, esse círculo vicioso implacável e destruidor de todo valor humano; o egoísmo e o espirito de opressão, a lutar pela própria carreira, que reduz o próximo unicamente a mais um adversário a eliminar, um concorrente a superar, um degrau pelo qual subir” (Missal Dominical da Paulus, p. 148).

 Tem Piedade

 “Abre-me as portas do arrependimento, tu que dás a vida, porque para teu templo santo se eleva o meu espírito. Purifica-me, tu que és o compassivo, na misericórdia de teu amor. Nos caminhos da Salvação, dirige-me, Mãe de Deus, porque com múltiplas faltas, manchei minha alma; na negligência, desperdicei minha vida. Por tuas preces, Mãe, livra-me de todas as impurezas.Tem piedade de mim em teu grande amor, Senhor, na abundância de teus gestos de compaixão apaga meu pecado. Infeliz, diante de meus inúmeros pecados, tenho receio do dia da prestação de contas. Confiando, no entanto, no amor de tua misericórdia dirijo-me a ti como o rei Davi. Em tua grande misericórdia, Senhor, tem piedade de mim.”

                                                 (Texto “Retiro Mensal – Fr. Almir Guimarães)