17.06.2017

11º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Madrid - Mosaic of Jesus Christ and apostle Peter and John from main apse of  Iglesia de San Manuel y San Benito by architect Fernando Arb?s from 19. cent. in March 9, 2013 in Madrid.

 

Introdução:

Iniciamos, com este Domingo, o 11º do Tempo Comum, a celebração do mistério da Igreja, de sua presença, vocação e missão no mundo e para o mundo. Por isso, e para isso, iluminados pelo Evangelho de hoje, celebramos, felizes e agradecidos, o chamado e a missão que Jesus faz aos Apóstolos e a todos nós.

  • Israel chamado para ser um povo para todos os povos

A misteriosa graça do Cristo que chama e envia os Apóstolos, sua Igreja, tem seu prenúncio já no Antigo Testamento, como vemos na primeira leitura de hoje.

  • O Senhor chamou Moisés do alto da montanha

No deserto do Sinai, acampado “diante de uma montanha”, Israel ouve do Senhor o desejo e a proposta de uma aliança. Na verdade, se trata da culminância de todo uma aspiração, de toda uma caminhada em busca da libertação para que, enfim, Deus não estivesse só, neste mundo, mas tivesse um povo que o servisse de verdade. Na saga da libertação, porém, não basta ao homem alcançar uma liberdade negativa, passiva, no sentido de apenas “libertar-se de”, no caso de Israel, de libertar-se do jugo da escravidão que lhe fora imposta pelos egípcios; é preciso, para além disso, alcançar uma liberdade positiva, “libertar-se para” o bem, no caso de Israel, para o seu Senhor que “os havia trazido até Ele sobre asas de águia”. Assim, a partida de Israel do Egito tendia, ao natural, para esta culminância: a celebração da aliança com o Senhor, o Deus da libertação.

A aliança com o Senhor (YHWH) possibilitou que as multidões que provinham dos nômades patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó) se tornassem um povo organizado (uma confederação de tribos). O Senhor seria o Deus deste povo e este seria o povo deste Deus. A aliança fora compreendida inicialmente por este povo em vista das vantagens econômicas (propriedade da terra e fartura de bens) e políticas que trariam independência e domínio de outros povos da região. Com o passar do tempo, principalmente através dos profetas, foi ficando claro que, na aliança entre Deus e o seu povo, o que estava em jogo, mais que conquistas econômicas e políticas, era um “sacrum commercium”, um comércio sagrado, um pacto de amor, como a aliança que se estabelece entre esposo e esposa. Deus se compromete, no amor, com o seu povo como um esposo à sua esposa amada. E, por isso, requer do seu povo também a resposta de amor que deve traduzir-se em compromisso. Com o tempo, mais ainda, este povo foi entendendo que sua missão histórica estava a serviço não só de si mesmo mas também dos outros povos.

  • Na antiga aliança o prenúncio da nova

Estava lançada, assim, a semente da futura e definitiva aliança. Se os termos da aliança antiga foram estabelecidos nas Dez Palavras ou Mandamentos (Decálogo) (Ex. 20, 1-17) e desdobrados no “código da aliança” (Ex. 20, 22-23, 19), os termos da Nova Aliança foram estabelecidos no Mandamento Novo: “amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, vós também amai-vos uns aos outros” (Jo 13, 34).

O mandamento novo (kainé entolé), se torna, pois o princípio da nova aliança,  selada com o sangue de Cristo, derramado na cruz. Era o princípio da nova disposição, da nova constituição, do novo ordenamento de todos os relacionamentos entre Deus e o homem e também de todos os relacionamentos dos homens entre si. O sacrifício de Cristo na Cruz, eis a nova aliança, o novo testamento! Testamento, aliança, adquire, pois agora o significado de um pacto com a nova geração que nasce e vai seguir os passos daquele que vai morrer e que deverá tornar-se a herdeira de seu legado, em palavras e em obras. Falando de como se concretiza o compromisso deste mistério, assim se expressa o pensador Carneiro Leão: “É respondendo ao apelo quenótico (kénosis) do mistério que a mensagem cristã se transforma na convivência (koinonia) inaugural de uma nova vida (kainótes). É a metamorfose do homem histórico de Nazaré no Cristo da Fé, levando todos os seres para a parusia da salvação”.

  • O modo como o Senhor conduz seu povo

A aliança que o Senhor estabelece com Moisés e através dele com seu povo, confiando-lhe a missão de ser o seu Povo eleito entre todos os povos e a serviço destes, se articula dentro de uma história que evoca o passado, o presente e o futuro.

Primeiramente, o passado. Por isso o Senhor diz: “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egito, como vos carreguei sobre asas de águia e vos fiz chegar até mim” (Ex. 19, 4). A figura da águia é usada por Deus, aqui, para despertar nos judeus a consciência acerca do modo como Ele os vinha tratando. Em vez de tê-los transportado do Egito, de uma terra de escravidão, tendo de palmilhar sozinhos, passo a passo, o arenoso e escaldante solo do deserto, Ele os trouxe suave e velozmente até Si “sobre asas de águia”.

A águia, considerada desde os primórdios da história humana, como rainha das aves e a ave solar, representa, entre outras qualificações a majestade, a ternura, o cuidado paterno-materno. Deus, o Altíssimo, portanto, age com a desenvoltura de um rei em favor da libertação de sua rainha, de seu povo, carregando-o com o vigor e a ternura de um pai e nutrindo-o com a solicitude de uma mãe.

Em segundo lugar a busca da aliança evoca e apela para o presente: “agora, pois, se ouvirdes minha voz e guardardes minha aliança, sereis meu tesouro dentre todos os povos, pois toda a terra é minha” (Ex. 19, 5). Chamando Israel de “meu tesouro” ou “minha porção” o senhor está indicando que sua aliança é diferente das alianças políticas, econômicas, etc. Será uma aliança de comunhão e de familiaridade com Ele. Comunhão e familiaridade, porém que só acontecerá se houver, da parte do povo, a escuta da sua voz, bem como a prática dos termos da aliança, os mandamentos. Se isto acontecer, diz o Senhor, Israel se tornará seu “quinhão”, sua porção, sua propriedade, sua pertencência querida, amada, seu povo predileto entre todos os povos.

Finalmente, a busca da aliança, por parte do Senhor termina com uma promessa para o futuro: “e vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex. 19, 6).

Israel não seria mais apenas um povo como os outros povos. Seria um povo transcendente, iluminado, nascido do alto e a serviço da iluminação e santificação dos outros povos; um povo destinado a testemunhar o Senhor no meio das nações, destinado a oferecer a Ele um sacrifício de louvor, e a receber Dele o seu favor, a sua graça em benefício de todos os demais povos. Seria, pois, um povo de sacerdotes e regido por sacerdotes.

O grande equívoco no qual eles, os israelitas de ontem e nós cristãos de hoje, incorremos, muitas vezes, consiste em confundir o ser “eleito”, “santo” e “separado” por Deus como um privilégio puro e simples, como uma prerrogativa que o poria na condição de “raça pura”, melhor do que os outros sob o ponto de vista étnico, moral e religioso (uma espécie de “tropa de elite”), e não como o chamado para um serviço em favor de todos os homens para que todos sejam trazidos ao reino da salvação. Surgem, então, a intolerância e os intolerantes, as arrogâncias e os arrogantes frente aos homens “de fora”, tidos como “pecadores” e “impuros”, pondo-se a perder totalmente o sentido da vocação sacerdotal deste povo da aliança. Aparece, então, o “farisaísmo” em sentido pejorativo, contra o qual Cristo adverte, ao dizer: “se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e fariseus, de modo algum entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5, 20).

  • Compaixão princípio de todos os princípios da vocação e missão de Jesus

Na perícope do evangelho de hoje, Jesus começa a concretizar a promessa de Jahvé de instaurar no mundo o Reino da compaixão e de compassivos, da misericórdia e de misericordiosos. Encontramos nela três momentos sucessivos e visceralmente interligados pela compaixão: Jesus vê e se compadece das multidões, chama os apóstolos e os envia para serem testemunhas de sua compaixão.

  • Jesus vê as multidões

O evento começa com esta bela constatação: Jesus estava “vendo as multidões…”. É evidente que, aqui, mais que o ver físico, estático e corporal se trata do ver da graça da afeição, do encontro. Deus, o nosso Deus, é sempre descrito na Sagrada Escritura como o Deus que vê, observa, olha, cuida seu povo como o definiu magnificamente bem a agradecida e comovida escrava Agar: “Tu és o Deus-que-me-vê… Pois aqui cheguei a ver Aquele que me vê” (Gn 16,13). Além do mais, Jesus sempre se mostrou muito atento, atencioso e compassivo não apenas individualmente, com as pessoas que sofriam, mas também coletivamente, com as multidões. E o evangelista de hoje acrescenta logo a causa: “porque estavam exaustas e prostradas como ovelhas sem pastor”.

Compaixão há que ser entendida aqui não como simples pena, dó, mas como amor de paixão e de misericórdia, isto é, como aquele amor terno de pai ou de mãe, em que o homem se deixa atingir nas suas vísceras (esplanchna) pela situação ou dor do outro. Exemplo desta compaixão podemos ver em São Francisco que, segundo os biógrafos, após a graça do encontro com o leproso e de seu beijo, costumava “estender sua mão misericordiosa aos que não tinham nada, mostrando uma compaixão visceral aos aflitos” (1C 17). Mais expressiva ainda era sua compaixão pelo seu Senhor: “Andava chorando aos prantos e em alta voz, clamando: ’Choro a Paixão do meu senhor…” (LTC 14). A compaixão pelas multidões era, pois, a alma, o fogo que levava Jesus a percorrer cidades e aldeias ensinando, anunciando o evangelho do Reino, curando os homens de suas doenças e enfermidades (Mt 9, 35).

Por isso, o objeto da compaixão de Jesus, aqui, não são apenas as pessoas individualmente, mas as multidões. A multidão é o “não-povo” que tem que se contentar com a aridez e a frieza do ajuntamento e não com a graça do encontro que leva à comunhão, à familiaridade com Deus e com os companheiros. As multidões sempre vivem perdidas, sem origem e sem destino “cansadas e abatidas, como ovelhas que não tem pastor”. Bem dizia Charles Chaplin: “as multidões são monstros sem cabeça”. Por isso, se para muitos as multidões abatidas que, certamente, em muitos despertavam a aversão e o desprezo, a Jesus despertam a misericórdia: o amor entranhado e terno do Pai. Por isso, as censuras, reprovações e acusações de Jesus em vez de se dirigirem às multidões ou para os inimigos políticos – os romanos – recaem sobre seus líderes religiosos, os pastores (sacerdotes, escribas). Elas tinham doutores, mas não pastores capazes de se compadecer de suas feridas; tinham conservadores e controladores das tradições e fiscais da lei e do sábado, mas não guardiães do amor e da misericórdia; tinham sacerdotes, mas não amigos, companheiros capazes de comungar de suas angústias, fraquezas e quedas. Estes comportavam-se, ora como lobos, ora como ladrões, ora como mercenários.

Por isso, sentia Jesus que chegara a hora de realizar as inúmeras promessas que o Pai fizera outrora ao seu povo querido através dos profetas, como esta: “A ovelha perdida eu a buscarei; a que se desgarrou, eu a reconduzirei; a que quebrou a pata, eu a tratarei; a enferma, eu a fortalecerei” (Ez 34, 16).

  • Jesus chama os doze Apóstolos

Do olhar misericordioso e compassivo nasce um outro ver, um ver novo que o olhar comum, alheio, acomodado e interesseiro não é capaz de ver: que a multidão não é multidão, mas a messe de Deus e que as espigas maduras, douradas estão prontas para serem recolhidas no Reino de Deus: “A messe é grande! Só a sua misericórdia vê tudo isso! ” (D. Bonhoeffer, Sequela, p. 187). Sim, a colheita é urgente! Não há tempo a perder!

  • Jesus passa aos Apóstolos sua autoridade

Mas há um problema: “poucos são os operários”. Isto quer dizer: são poucos os que têm o olhar misericordioso e compassivo de Jesus – o bom pastor – para com as multidões. Jesus precisava, pois, de colaboradores. Daí sua recomendação aos seus discípulos: “Pedi, pois ao dono da messe que envie operários a sua colheita”. O pedido de Jesus ao Pai foi atendido: este lhe deu doze companheiros, irmãos, amigos, cooperadores na sua obra. A urgência era tanta que ele envia logo estes doze, que se tornaram exemplos, protótipos para todos os “chamados-enviados” de Jesus ao longo dos séculos.

Aos doze eleitos, chamados para serem seus colaboradores, Jesus não apenas os chamou de “apóstolos”, isto é, enviados, mensageiros, mas também passa para eles a autoridade (exousía) que Ele recebia de sua proximidade e intimidade com o Pai. Autoridade aqui antes de comando, chefia, significa o vigor, a paixão daquele que, movido pela graça do encontro, e a modo de servo, se dá todo para que o outro apareça e cresça em sua identidade. Autoridade é, essencialmente, a capacidade de abrir caminho para uma possibilidade de ser. Assim era, por exemplo, a autoridade de João Batista: sua profunda união com o Messias levou-o a fazer tudo para que ele desaparecesse e em seu lugar aparecesse o Messias; assim foi também a autoridade de Jesus: sua profunda comunhão com o Pai levou-o a dar sua vida, até a morte e morte de cruz, para que Ele, desaparecendo, aparecesse o Pai e seu Reino. A verdadeira autoridade sempre faz o outro crescer.

A autoridade de Jesus e dos Doze confronta-se, assim, com o poder negativo, corrompido e corruptor. Rompe e permanece rompido com sua fonte, sua origem, no caso com o amor que é Deus e com sua vocação originária que é a de ser o cuidador, o guardião das criaturas. Instaura-se, assim, o anti-Reino, o poder demoníaco, dia-bólico (divisor) que destrói, divide, escraviza pessoas e demais criaturas. O Reino das potências do mal, dos demônios (dominações, principados, potestades – segundo a linguagem de Paulo), que se manifestam na ânsia do poder e da possessão. Temos, assim, de um lado o anti-Reino com seus poderes que se apossa dos homens, tornando-os escravos de seus vícios e pecados, tirando-lhes o vigor e a alegria de viver e de outro lado a autoridade de Cristo, compartilhada com os seus mensageiros que liberta os homens e as criaturas  para a liberdade dos filhos de Deus. A vitória de Jesus é o penhor da vitória dos seus enviados que se tornam instrumentos da misericórdia de Jesus Cristo no mundo, o Bom Pastor.

  • Jesus então chamou os doze

O número doze está bem presente na Antiga e na Nova Aliança. Doze eram os filhos de Jacó (Israel), os patriarcas (Gn 35). O povo de Israel se compõe de doze tribos e tem doze príncipes (Nm 1).

Quanto ao simbolismo deste número, entre as muitas considerações, vale realçar a interpretação de Santo Agostinho, segundo a qual Cristo é o Sol (a luz do mundo) e os Apóstolos são as Doze horas que o circundam e que comunicam a claridade de Cristo para o mundo. Assim como o sol ilumina as horas, assim também Cristo ilumina os apóstolos. Cristo é sol que, pelo envio dos Apóstolos, as horas, iria iluminar os homens de todo o universo, manifestando-lhes a glória de Deus, tornando os homens verdadeiramente vivos.

O número doze significa, pois, a perfeição e a universalidade da obra de Cristo, em que os Apóstolos são os primeiros e os mais nobres cooperadores. Esta obra é o Reino de Deus e o povo da Nova Aliança que dele surge, a saber, a Igreja.

  • Comunidade na singularidade – singularidade na comunidade

Cada um dos doze, chamados e eleitos – de Simão Pedro até Judas – ao ser evocado com o seu nome, se apresenta diante de nossas mentes com sua singularidade. Assim, Simão, por exemplo, é o primeiro entre os pares. Se Cristo é a Pedra (1 Cor. 10, 4), Simão tornou-se Pedro (de Pedra) por sua união com Cristo e por tê-lo confessado como o Filho do Deus vivo. Sobre o Cristo confessado por Pedro como o Filho do Deus vivo está fundada a Igreja (cf. Mt 16, 18).

Ao percorrermos a lista dos chamados transparece com muita clareza as diferenças tanto individuais como das seis duplas. Trata-se, pois, de homens bem diferentes um do outro, às vezes até opostos. Mas, suas diferenças foram reunidas numa identidade comum: a de serem os discípulos-mensageiros de Cristo, os Doze Apóstolos. “É somente o chamado e a eleição que une os doze (…). Nenhuma razão no mundo teria poder de coligar estes homens na mesma obra fora do chamado de Jesus. Aqui foi superada toda precedente divisão e foi fundada a nova, firme comunidade em Jesus” (D. Bonhoeffer).

As explicações do envio por duplas e não individualmente são várias. A que mais se ressalta é a de que a missão é da Comunidade, da Igreja. Jamais do evangelizador. Além do mais, se o evangelizador fosse sozinho, com quem iria ele partir o pão do amor, como iria realizar o mandamento de lavar os pés uns dos outros, essência de toda a evangelização?!

Na história do cristianismo, os diversos apóstolos imprimiram um caráter pessoal a esta ou aquela tradição, comunidade ou igreja. Uma será a Igreja de Jerusalém, outra a de Roma, etc. Mas, todas formam e constituem a única Igreja de Cristo: uma “Igreja una, santa, católica e apostólica” (Símbolo niceno-constantinopolitano). O cristianismo nunca foi homogêneo. Nele, as diferenças não são obstáculos, mas riquezas para a comum identidade. Isso foi muito bem compreendido e vivido, treze séculos mais tarde, na fraternidade primitiva da Ordem de São Francisco de Assis, de que os Atos do bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros (I Fioretti) nos dão admiráveis e belos exemplos. Clássica é a frase de São Francisco: “Irmãos meus, Irmãos meus, como gostaria de que minha Ordem fosse uma selva de juníperos!” (VJ 1).

  • O Envio

Na parte final do evangelho de hoje, Jesus, primeiramente, dá aos seus eleitos-enviados as instruções e depois confia-lhes sua missão.

  • As Instruções

A primeira instrução é uma restrição: “Não sigais o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Ide primeiramente às ovelhas perdidas da casa de Israel”.

Esta restrição, antes de exclusão aponta para uma concentração provisória. Significa simplesmente que Deus se mantinha fiel a sua promessa de fazer de Israel seu povo escolhido e enviado para fazer chegar seu reino a todos os povos. Foi somente depois da oposição e da rejeição dos judeus, que fica claro para a Igreja primitiva a universalidade da missão cristã. Por isso, São João Crisóstomo entende este primeiro envio como uma escola, uma aprendizagem, uma espécie de estágio: preparar os Apóstolos para sua futura missão na qual eles irão ao encontro e de encontro às nações de toda a terra após a Ressurreição do Senhor.

A segunda instrução diz: “Pelo caminho, proclamai que está perto o reino dos Céus” (Mt 10, 7). Ao mensageiro compete anunciar nenhuma outra mensagem senão a daquele que o envia. Ora, anunciar o Reino de Deus foi a essência de toda a missão de Jesus desde o princípio até o fim de sua vida apostólica. Esta deverá ser, portanto, também a mensagem dos apóstolos e de todos os evangelizadores: Proclamar que o Reino do Céu veio para a terra, isto é, que o Deus Pai e Filho e Espírito Santo, com seus anjos e santos, com suas virtudes e potestades – o que equivale dizer: sua compaixão -através do mistério da encarnação-morte e ressurreição, veio morar no meio de nós. Com o envio dos Apóstolos, o reinado de Deus começa a penetrar no mundo, na história e na criação toda, um “Reino que não é nem bebida e nem comida, mas justiça, paz e alegria no Espírito” (Rm 1417), um reinado que é de compaixão e de “compassivos” (Ef 4,31) ou de compadecidos (Cf. Auto da Compadecida, peça teatral de Ariano Suassuna).

  • As obras

Ao anúncio do reino seguem, natural e necessariamente, as obras. Ou seja, do enviado se espera não apenas que anuncie as palavras daquele que o enviou, mas também que realize suas obras. É que a palavra de Deus, de que os apóstolos são mensageiros, é palavra-e-obra, é palavra-evento, palavra que deixa e faz acontecer o seu Reino. Por isso, Jesus lhes ordena: “Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, sarai os leprosos, expulsai os demônios”. Assim, “o anúncio se torna evento, o evento testemunha o anúncio” (D. Bonhoeffer)[1]. Este evento consiste na aniquilação daquilo que aniquila o homem: o império do pecado e da morte, em que o homem se encontra ao mesmo tempo perdido na massa (multidões informes) e sozinho com o seu desespero, entregue ao “niilismo” e às suas consequências nefastas, como mostra Dostoiévski no seu romance “Os demônios” ou “Os possessos”.

Assim, no envio dos Doze mensageiros, atua o Único que os envia: Cristo, a Palavra viva do Pai – mensageiro e mensagem, ao mesmo tempo – pois é nele e com ele que o Reino de Deus – sua compaixão – se tornou próximo dos homens. E se crermos Nele, diz Jesus, faremos também as obras que Ele faz (Cf. Jo 14,12), isto é, também seremos capazes de ser compassivos com as multidões cansadas e abatidas, levando-as do inferno do “não-povo” para a bem-aventurança de se tornarem Povo de Deus, Igreja.

Conclusão

Para São Francisco, a compaixão de Jesus Cristo, admirável e divinamente testemunhada na Cruz, é o coração de Deus, o coração do Evangelho, a grande bela e boa nova (Evangelho) que salva os homens porque os liberta do inferno do egocentrismo, tanto dos indivíduos como das massas, congregando-os, assim e de novo, em povo: Povo de Deus, Igreja. Uma compaixão, porém, que se desdobra em atos de misericórdia. Por isso, dizia ainda que “bem-aventurado é o homem que suporta o próximo segundo a sua fragilidade naquilo que quereria ser suportado por ele, se estivesse em situação idêntica” (Ad 18).

Neste sentido, Jesus não está chamando e constituindo funcionários, tarefeiros, mas pessoas para, primeiramente, serem e estarem com ele como amigos, irmãos, companheiros no mesmo chamado e na mesma missão do Pai (“companheiro”, no latim “cum” + “panis”: aquele que come do mesmo pão). Por isso, diz nosso Papa Francisco: “o verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar segura do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém (EG 266).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm