07.10.2017

27º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Cross At Sunset With Sunlight And Orange Clouds

Introdução

Hoje, celebramos, o Pai que, em vez de condenar os vinhateiros que rejeitaram, maltrataram e mataram seu filho único, Ele O estabelece não apenas como salvador deles, mas também como pedra de ângulo do novo Povo de Deus, o princípio de uma nova humanidade. Este mistério nos é revelado através de uma parábola muito clara e ao mesmo tempo muito forte: a “parábola dos vinhateiros homicidas” ou a “parábola da pedra rejeitada, mas que foi feita a pedra angular”.

  • Do cortejo à vinha ingrata

Quem abre a Liturgia da Palavra deste domingo é o grande profeta Isaias que teve de enfrentar um dos momentos mais críticos de sua missão. Inundado pelo Espírito do Senhor prevê a iminência de uma grande calamidade: a deportação, o exílio do Povo eleito de Deus. Comandado pelo rei Acaz, o povo prefere unir-se aos povos pagãos do que permanecer fiel à aliança com seu único e verdadeiro Deus. Uma aliança que levaria a um servilismo sem precedentes, concordando até com a construção de um altar às divindades pagãs junto ao altar do templo. Este pecado capital dava origem à uma decadência generalizada, com uma série de outros crimes e injustiças, principalmente contra as viúvas, os pequenos e fracos. A situação era, pois, de confronto aberto. Israel devia decidir-se: “alianças ou aliança?”

  • Do canto da vinha

Em sua missão de profeta, Isaias, a fim de impedir que isto tudo acontecesse, toma a inciativa de propor-lhes o famoso “Canto da Vinha”. Mais que o simples falar, ou escrever, cantar, é certamente, uma das mais expressivas formas de amar ou de manifestar gratidão, pertença à pessoa amada, dependência e adoração.

Ouçamos, então como Isaias começa sua tentativa de salvar Israel: “Vou cantar para o meu amado o cântico da vinha de um amigo meu. Um amigo meu possuía uma vinha em fértil encosta. Cercou-a, limpou-a de pedras, plantou videiras escolhida… ”. A fim de mostrar o quanto Jahvé amava seu Povo predileto, sua esposa amada e única, Isaias nada de melhor achou do que cantar-lhe seu amor. Para isto inventa o “Canto da vinha bem-amada”.  O centro do canto está em um dos símbolos mais preciosos dos povos antigos e, principalmente, do homem bíblico: a videira e, por extensão, a vinha. Seu simbolismo, por causa da deliciosa uva e do inebriante vinho, nos remete ao mundo do amor, da alegria e da embriaguez mística. Não é por acaso que Jesus na Última Ceia, ardendo de amor esponsal, toma o cálice com vinho, jubiloso e dando graças, exclama: “Isto é o meu sangue que será derramado por vós…”

Pois bem, para esta sua vinha, o “amigo” de Isaias, que não é outro senão o próprio Deus, se esmera todo a fim de que à sua amada – a vinha – não lhe falte absolutamente nada: terra fértil, desmatamento, retirada das pedras, torre, lagar, cercado. Enfim, como uma esposa amada, cercada de carinhos e cuidados, tinha tudo para gerar para seu amante numerosos filhos e descendentes, isto é, copiosas obras de fé, inúmeros feitos de justiça.

  • Da decepção

No entanto, e apesar de ser tão apaixonado e diligente, o amor deste homem amante sofre uma das mais amargas decepções: “Esperava dela uvas boas, só colheu uvas más”. A partir daí o canto da vindima entoado como um canto de amor vira:

– uma parábola de julgamento: “Agora, habitantes de Jerusalém e cidadãos de Judá, sede juízes entre mim e minha vinha”;

– uma interpelação: “Que mais podia fazer à minha vinha que não tivesse feito? Quando eu esperava que viesse a dar uvas, porque é que apenas produziu uvas más?”;

– um veredicto: “A vinha do Senhor do Universo é a casa de Israel, e os homens de Judá são a plantação escolhida. Ele esperava direito (mishpat) e só há sangue derramado (mispah); Esperava justiça (zedaqá) e só há gritos de horror (seaqá)”.

Esta foi a última tentativa de Deus, através de seu servo Isaias, de impedir que seu povo amado mergulhasse numa apostasia religiosa total. Por isso, Ele mantinha a esperança que esta prostituta se tornasse de novo “Cidade-justiça, Cidade-fiel” (Is 1, 26), “esposa amada”; que a vinha amada deixasse de produzir ervas amargas e uvas selváticas para produzir uvas saborosas e vinho inebriante. O Senhor-Esposo não desiste de sua esposa, de sua amada, de seu povo, mesmo quando aparentemente o abandona à sua própria sorte, como veremos, a seguir.

  • Da parábola dos vinhateiros homicidas ou da pedra rejeitada que se se faz a pedra angular

O que Isaias anunciara como profecia, realiza-se em plenitude e de forma ainda mais inaudita pelo mistério e pela obra de Jesus Cristo, a verdadeira videira de seu Pai, o dono da vinha. Ele mesmo proclama a obra deste seu mistério e ministério através da parábola dos vinhateiros homicidas.

Como veículo de transmissão de um ensinamento religioso a parábola é de tamanha simplicidade que até os sumos sacerdotes e anciãos do povo a entenderam claramente. Apenas (?) não souberam ou não quiseram ver que ela era dirigida principalmente a eles. Por outro lado, é tão dura, tão cruel que dificilmente julgamos que tenha algo a ver conosco, cristãos e religiosos de hoje.

A parábola (Mt 21, 33-43), é análoga à história da vinha má de Isaias. Só que agora a ruindade se encontra propriamente não na vinha, mas nos seus arrendatários. Por isso, pode ser chamada de “parábola dos arrendatários homicidas”. A gravidade do pecado está no fato de eles – simples arrendatários da vinha – se arrogarem o direito à sua propriedade. Para um crime de roubo tão desonesto ousam, primeiramente, maltratar muitos empregados e embaixadores do seu senhor e matar outros, para, finalmente, ao aparecer o filho, o herdeiro do próprio dono da vinha, chegar à decisão extrema e perversa de agarrá-lo, jogá-lo para fora da vinha e matá-lo. E foi o que fizeram.

  • Da Igreja – a nova vinha do Senhor

Como toda parábola, também, e principalmente esta, adquire diversos significados, entre eles, especialmente, o de explicar a origem e o sentido da Igreja que foi chamada a substituir o antigo povo de Deus. Esta interpretação se fortaleceu, principalmente diante do fato de no ano 70, depois de Cristo, aquele povo tão querido por Deus ter sido derrotado e arrasado completamente pelos romanos. Longe de nós, porém qualquer pontinha de orgulho, pois pode muito bem acontecer conosco, cristãos e Igreja do século XXI e de todos os tempos, o que aconteceu com o antigo Israel.

Os padres da Igreja costumam fazer uma leitura bastante alegórica desta parábola. Assim, e primeiramente, precisamos e devemos ver, como, no canto da vinha de Isaias, o quanto de cuidados e de carinho Deus – o Pai – vem dispensando em favor desta sua nova família. A sebe, por sua vez, com a qual ele cerca a vinha, é o auxílio dos anjos ou a defesa dos pastores e doutores. O lagar é o lugar em que se derrama o sangue dos mártires ou então se refere à palavra cheia do fogo do espírito dos profetas. A torre, que se ergue entre a terra e o céu, e que permite a vigilância da vinha, é a profecia, que permite avistar de longe a vinda e a presença do Cristo.

Quanto à retirada e a ausência do proprietário de sua vinha, além da longanimidade do Pai, a parábola quer mostrar a grande confiança que Ele deposita neste seu novo povo, entregando-lhe o encargo de levar ao mundo inteiro e à humanidade toda a sua salvação através da administração dos tesouros de seu Reino, principalmente seu amor, sua misericórdia e perdão. Quanto aos novos colonos, incumbidos do cuidado do Reino de Deus (que para Orígenes coincide com a Sagrada Escritura e seus mistérios), seriam os Apóstolos e a Igreja Apostólica.

Hoje, portanto, nós cristãos, nós Igreja, somos a nova vinha, os novos colonos aos quais o Senhor nos diz: “Eu Vos escolhi do mundo, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16). Mas, o que são estes frutos? Segundo Isaías: o direito e justiça. No evangelho: o amor.

  • Dos maus e cruéis vinhateiros

Como outrora, a antiga vinha, também esta, a nova, a Igreja, nascida da pedra rejeitada pelos homens, continua sendo do Senhor, do seu Senhor e jamais de seus operários e servos. Longe de nós, portanto, querer ou buscar discípulos para a Igreja, muito menos para nós. Longe de nós querer adonar-nos de seu Senhor, querê-lo ou buscá-lo como nossa propriedade, como por vezes o faz o malfadado clericalismo, chamado pelo Papa Francisco de “peste enraizada na Igreja”. O Senhor enviou os Apóstolos pelo mundo para procurar seguidores para Ele e para o Pai, jamais para eles mesmos. Estes, entre outros, são os principais frutos que a Igreja deve produzir: discípulos devotados a Jesus e fiéis observadores de seu Evangelho, principalmente da justiça e da caridade. E se isto não fizermos, será que Deus não passará adiante, buscando novos caminhos, novos administradores de sua salvação, novos povos para formar sua Igreja?

De qualquer forma a conclusão de Jesus, usando como testemunho a palavra das escrituras soa como um alerta para todos os fiéis de todos os tempos: “Nunca lestes que a pedra rejeitada… foi feita a pedra angular!?”

 Na verdade, aqueles vinhateiros em vez de servirem à vinha serviam-se dela para seus espúrios interesses. Haviam aprisionado Deus a seus próprios negócios. Não podiam permitir as iniciativas absurdas Daquele Filho que ameaçava não apenas sua religião, mas até mesmo o que tinham de mais sagrado, o templo, com seus líderes, os sacerdotes e mestres da lei.  Não havia outra solução senão eliminá-lo, matá-lo. É a imagem perfeita do homem que se faz absoluto, que pretende construir a vida a partir de si, por si e para si, excluindo qualquer outra referência fora dele, até mesmo a de Deus. Deus tem que morrer. É claro que se decretando a morte do Filho de Deus, decreta-se a morte de todos os seus filhos, desde o homem até a mais ínfima de todas as criaturas, introduzindo, assim o princípio da desolação atual da humanidade e de todo tipo de degradação da natureza e de suas criaturas. 

            Portanto, uma parábola sumamente atual. Falando deste drama, diz o pe. José Antônio Pagola: “É difícil não estremecer diante dos gritos do louco na Gaia Ciência” de F. Nietzsche: ‘Onde estava Deus? Eu vou dizer-vos. Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos seus assassinos! Mas, como pudemos fazer isso? O que fizemos ao cortar a cadeia que unia esta terra ao sol!? Para onde se dirige agora? Para onde nos dirigimos nós?” (O Caminho aberto por Jesus – Mateus, p. 259, José A. Pagola).

Comentando esta passagem do filósofo alemão, Pagola cita ainda Marcuse e Ignazio Silone: “O desenvolvimento científico, privado de direção e de sentido, está convertendo o mundo numa grande fábrica e vai produzindo não só máquinas que se assemelham ao homem, mas homens que se assemelham cada vez mais às máquinas” (Idem, p. 260).

  • Da pedra rejeitada que se tornou a pedra angular

O protagonista de toda a parábola, porém, não são nem os vinhateiros nem os emissários do dono, mas, o Filho e herdeiro. Segundo São Jerônimo, tanto na parábola dos arrendatários homicidas como na citação da Escritura, temos o mesmo ensinamento: “A pedra que os construtores rejeitaram foi a que se tornou pedra angular: isso é obra do Senhor, coisa admirável para nossos olhos”. Apenas uma diferença: o que a parábola tem por colonos arrendatários a citação tem por construtores. Mas, de qualquer forma, o rejeitado, o Filho Crucificado se torna a peça fundamental, a partir da qual se constrói uma nova realidade, se edifica uma nova humanidade. Nesta nova humanidade, se unem as duas partes da humanidade, do ponto de vista bíblico, isto é, os judeus e os gentios. Este, porém, que é pedra de ângulo para aqueles que creem, pode ser também pedra de tropeço para os que não creem.

Os Padres da Igreja observam também, na insistência do proprietário e pai de família de enviar emissários à sua vinha, a misericórdia divina. Deus, na sua longanimidade, enviou os profetas, que foram rejeitados, expulsos ou mortos. E, na sua misericórdia ainda maior, enviou o próprio Filho, o herdeiro do Reino (Cf. Sl 2, 8). Assim, pelejavam, uma contra a outra, a malícia humana e a clemência divina. Deus esperava que ao Filho fossem respeitar, já que não respeitaram aos profetas. Enviou o seu Filho para oferecer o perdão e propor a reconciliação. Mas, em vão. Novo fracasso. O Filho foi rejeitado: “agarraram-no, lançaram-no fora da vinha e o mataram”.

A cidade de Jerusalém, isto é, seus habitantes, o expulsaram e o mataram fora de seus muros, crucificando-o no Gólgota (Calvário = monte da caveira). Os líderes do povo agiram por inveja para com o Filho. E também por avareza: “matemo-lo e apoderemo-nos da herança”. O Pseudo-Crisóstomo escreve: “este é o pensamento geral de todos os sacerdotes materiais que não cuidam de como poderá viver o povo sem pecar, mas que se fixam só no que se oferece na Igreja, considerando a isso como ganância de seu sacerdócio”.

Admirável é, pois, este mistério: Aquele Pai que tinha todo o direito de “mandar matar de modo violento os assassinos do Filho”, não só não faz isso, mas pelo contrário – coisa nunca vista – o oferece a eles, os inimigos, para que o crucifiquem e assim se torne seu Salvador: “a pedra que os, pedreiros rejeitaram, tornou-se a pedra angular…”. Eis o princípio da reconciliação entre céu e terra, criatura e criador, Pai e filho – o príncipe da paz. 

  • Da paz que guardará nossos corações

A paz que nos mereceu Aquele que em vez de vingança, na cruz, se ofereceu em oblação de reconciliação com aqueles que o crucificaram, porém, não pertence nem ao mundo dos sentidos e nem mesmo da inteligência humana. É o que Paulo, na segunda leitura de hoje, tenta nos transmitir, quando fala de buscar “a paz que ultrapassa todo entendimento”. É a paz no ápice da mente (Boaventura), ou, se quisermos, no fundo da alma (Eckhart). É a esta paz que Paulo convida os cristãos de Filipos – e a todos nós hoje. Exorta-os – e também a nós – a não ficarem inquietos, a não ficarem preocupados com nada (Cf. Fl 4, 6). Pelo contrário, com serenidade, na súplica e na prece, apresentar a Deus os próprios pedidos, “com ação de graças”. Já que Deus manifestou a sua benevolência para conosco, a nossa resposta deve ser sempre a da alegria, a da serenidade e a da gratidão. Mas, para isso em vez de inimigos devemos ser amigos da Cruz. Em vez da teologia da lei, que procura manipular e escravizar o próprio Deus, devemos seguir a teologia da cruz que deixa o fiel livre, disposto a aceitar também a morte.

Por isso, Paulo insiste com os filipenses e conosco: “E a paz de Deus, que ultrapassa todo o pensamento (nous), guardará os vossos corações e os vossos pensamentos (noémata) em Jesus Cristo” (Fl 4, 7). São Boaventura, teólogo franciscano, dizia que esta paz que transcende todo o intelecto e todo o afeto, que ultrapassa homens e anjos, é o próprio Deus. Que esta paz, então, que é Deus, nos guarde em Cristo Jesus e nos faça alegres e gratos, até o nosso encontro definitivo com ele. Amém.

Conclusão

O dito bíblico da “pedra angular”, antes de um fato, de uma imagem ou de um símbolo, está se referindo a uma Pessoa, o próprio Filho do Pai, que, a partir da Cruz, dá origem e move a nova humanidade, a nova história, a nova criação. Por isso, quando, em vez de conviver e de fazer festa com suas criaturas, decidimos dominá-las e explorá-las de qualquer jeito, de modo absoluto e selvático, estamos mais uma vez matando “o herdeiro da vinha” (Cf. LS 77 e 67).

Ouçamos o que diz nosso seráfico Pai, São Francisco, proposto pelo nosso Papa atual como exemplo e modelo de reconstrução da Igreja, da humanidade e da criação:

“Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou à imagem do seu dileto Filho, segundo o corpo, e à sua semelhança, segundo o Espírito. E todas as criaturas que existem debaixo do céu, a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao seu Criador melhor que tu. E também não foram os demônios que O crucificaram, mas tu com eles O crucificaste e ainda O crucificas, deleitando-te em vícios e pecados. (Ad 5,1-3)

(Pistas homilético-franciscanas)